Todos os relatos aqui podem não ser
inteiramente verdadeiros. As minhas experiências são, mas aos fatos convém
certo grau de desconfiança ou a cega entrega poética. No primeiro dia um guia
contou que Jacques Cousteau fez uma expedição ao topo do vulcão Licancabur e
mergulhadores retiraram do fundo do lago que existe lá uma esfera de cristal.
Ao chegar à superfície só houve tempo de fotografar o achado, que escorregou
das mãos do mergulhador e voltou para o fundo causando comoção geral. Pouco depois ouvi de
outro guia a história de uma amiga, um pouco bruxa um pouco feiticeira, que um
dia quis fazer uma oferenda à Pachamama então criou uma esfera de cristal
perfeita, escalou o Licancabur e lá atirou o presente dentro do lago.
A ideia que eu tinha de deserto envolvia dunas móveis, areia, camelos
e calor de rachar. Não incluía neve nem sal, e óasis era uma pocinha de água
tremelicando na visão já turva do sedento – que quase sempre era o Pica Pau em
algum desenho na infância. Certamente
não envolvia uma lagoa espelhando montanhas brancas situada depois de uma estrada com dois metros de gelo de cada lado.
Essa é uma das belezas de viajar: pega o que você acha que sabe e olha de novo.
Surpreendente, não é? E essa palavra, surpreendente, no Atacama ganha outra
dimensão.
Passar uns dias no deserto nos dá a
medida do nosso tamanho: um microponto no universo, ao mesmo tempo vulnerável e
com grande potencial destruidor. (Sempre faz bem para a humildade.) Nada por aqui é pouco. Se está muito frio na sombra às 9 da manhã, fique cinco minutos no sol,
mais do que isso sua pele começa a torrar. A terra por onde passam rios na época
das chuvas corresponde ao meu imaginário do sertão, aridez marrom com enormes
rachaduras. À primeira vista não dá para acreditar que corra água por ali, mas
me dizem que a chuva vem tão violenta que arrasta carros pelo caminho. A
umidade originária da floresta Amazônica não consegue passar pela cordilheira,
e penso que quando o faz carrega em si toda a fúria que motiva superação, e
chega explosiva trazendo felicidade e destruição em forma de água.
O que precisa ser moderado é o
homem. Ouse chegar ao Atacama e não dar ao corpo o tempo necessário para se
aclimatar e sentirá sua cabeça explodir. É a puna, ou mal de altitude.
A cidade de San Pedro fica a 2500
metros de altitude, e quem vai ao Salar de Tara ou às Lagunas Altiplanicas pode
chegar a quase 5 mil acima do nível do mar. Para combater o mal de puna
recomenda-se descanso, hidratação constante e chá de coca. Algumas pessoas para
quem indiquei a bebida recusaram com olhos arregalados - não, tenho medo que
seja alucinógeno! Fiquei na dúvida se a reação indicava um feedback sobre mim,
mas segui bebendo vorazmente e me sentindo igual a sempre, seja lá o que isso
queira dizer.
Apesar de ser uma reta, a rua
principal de San Pedro chama-se Caracoles. É naquela via de terra onde se
misturam mochileiros, alguns europeus de cara rosada pelo calor, hippies
vendendo brincos e os milhares de brasileiros e cachorros que geraram dois
apelidos para a cidade - San Paulo ou San Perro de Atacama.
A Caracoles é composta por
restaurantes caros como os do Rio, agências de turismo e lojas de um artesanato
igual ao do Peru, que então aprendi ser artesanato andino. Quem veio da Bolívia
também viu nas tiendas de lá as mesmas bonecas com trajes que não estão no povo
daqui, lhamas, esculturas de Pachamama, pompons e gorros coloridos. Alguns bares locais tem música ao
vivo à noite, mas é proibido dançar! Pensei que fosse uma questão de ordem pública
para evitar barulho, como a proibição de beber na rua, mas para minha surpresa
ouvi que a lei é mistura de resquícios de Pinochet com um tradicionalismo
cultural atacamenho – afinal, são uns doidos os que dançam.
Atacama significa lugar quente e
frio na língua kunza. A temperatura do deserto em agosto é igual à do Rio de
Janeiro em fevereiro, com a diferença que em San Pedro o amanhecer chega com 5
graus. No silêncio do salar, em Baltinache, é possível ouvir o estalar das
pedras conforme esquenta o dia.
O espaço do território chileno
ocupado pelo deserto do Atacama é uma faixa estreita de cem mil quilômetros
quadrados entre o oceano Pacífico e a cordilheira dos Andes. “Ela é uma
cordilheira novinha”, explicam, “e uma esponja”. A água da chuva é absorvida
pelas montanhas e corre por baixo da terra, carregando os minerais das rochas
até emergir e formar lagunas. Como a água evapora e os minerais não, a
quantidade de sal que vai sendo depositado é enorme. Algumas pessoas perguntam
sobre extração, eu pergunto se já posso mergulhar. É banho de sal grosso para
proteger por eras! Pode vir, felicidade.
Foi o jesuíta Gustave Le Paige quem
batizou o Vale de Marte, pela semelhança que acreditava que o lugar tinha com o
planeta vermelho. Entre as muitas rochas dali ele viu três que pareciam
mulheres rezando e as nomeou "As Três Marias". No tour para olhar as
estrelas o astrônomo canadense fez uma pausa para explicar aos turistas do
hemisfério norte minha intimidade com o Cinturão de Orion: na América do Sul, ele disse, qualquer
trio vira "as três Marias". Com seu sotaque belga Gustave Le Paige
falava "Vale de Marte", os atacamenhos entendiam "Vale de la
Muerte", e assim ficou. Suas Três Marias agora são duas, um turista subiu
para fotografar em uma delas e quebrou a rocha.
Diferentemente do que ensinaram na
escola, a Terra faz muito mais do que apenas girar em torno de si e do sol em
rotação e translação, totalizando 5 movimentos entre os quais um chamado "precisão",
que é tudo o que eu achei que faltasse no mundo. O desconhecimento sobre isso até
hoje explica muito sobre a minha vida.
O frio era tanto que estávamos
enrolados em cobertores, espalhados por um pátio no observatório sob a nítida
Via Lactea. As pessoas exclamavam “ouh! e uau! enquanto olhavam em telescópios
gigantes e eu estava certa de aquilo era igual à visão de células em um
microscópio, mas fingia com a cara de quem não consegue visualizar ultrassonografia,
até que finalmente consegui ver os planetas. Uau! “I know”, disse o astrônomo,
com um sorriso de pai orgulhoso do filho. Saturno e seus anéis são mais
famosos, mas Júpiter e suas luas são as coisas mais lindas que eu já vi na
galáxia.
Nem todos os vulcões parecem os de
desenho, estruturas triangulares de onde sai lava pelo topo. Alguns soltam
apenas cinzas, alguns são planos no topo porque tiveram explosões. O
Licancabur, triangular, separa o Chile da Bolívia e a seu lado fica o Juriques,
de topo plano após uma erupção. As lendas locais tem outra versão para esse
formato: os vulcões se apaixonaram por Cerro Quimal e nessa disputa amorosa o
Licancabur cortou a cabeça de Juriques. Achei um pouco violento.
Só é recomendado escalar o
Licancabur pelo lado boliviano. Durante a ditadura militar o general Pinochet
encheu a área chilena de minas terrestres para evitar uma invasão vizinha. Com
o deslocamento provocado pelas chuvas e pelo fato das minas serem feitas de plástico
o processo de remoção dos artefatos é lento, e não faltam histórias de pastores
que vão pelos ares ao andar por ali com suas lhamas. Achei o ciumento
Licancabur menos violento.
Para minha decepção, diferente de
Cuzco, em San Pedro não há lhamas passeando pelas ruas. A única que encontrei
foi em uma casa em Toconao, deitada junto com três ovelhas no que poderia ser
um canil. A proprietária jurou que solta os animais para passear e por isso os
enfeita com adornos de lã colorida nas orelhas e no pelo, assim não as confunde
com as outras. A escassez de fauna chamou minha atenção, além de poucas
vicunhas vi uma raposa, um coelho, burrinhos peludos e flamingos a uma
distancia que só o zoom da câmera possibilitou admirá-los. Estes não estão por
aqui em maior número por causa do gelo nos lagos (não deve mesmo ser agradável
passar horas se alimentando com a cabeça dentro da água semi-congelada), mas as vicunhas estão em risco de
extinção. Depois de acabar com os guanacos e pumas da região, o predador homem
agora caça vicunhas para vender sua pele. Com duzentos policiais para proteger
a área inteira fica difícil. Para evitar que os animais se acostumem com a presença
humana os guias não param os carros para chegarmos perto, assim eles se mantem
sabiamente desconfiados sobre as pessoas e tem mais chances de fugir ao ver alguém
se aproximar.
Depois de
caminharmos uns vinte minutos até a sétima laguna escondida de Baltinache meu
guia, um brasileiro auto-exilado no Chile, disse “agora vou deixá-la aqui um
pouco para refletir sobre a vida”. Sozinha?
Não vai aparecer um coiote, uma raposa? “Não vai aparecer fisicamente ninguém.”
E me deixou lá, cercada de sal, água azul e silêncio, relembrando o moai que
protege Tara e outros Monges da Pacana, formações rochosas com mais de 20
metros de altura que aterrissaram depois de alguma erupção vulcânica, o
anfiteatro do Vale da Lua com suas camadas quase exatas de minerais esculpidos
em milênios de erosão, as barreiras de gelo mais altas do que eu no caminho das
Lagunas Altiplanicas onde eu esperava ver areia, a incapacidade da câmera de
registrar a beleza e a grandiosidade daquele lugar que parece fazer de propósito
para obrigar as pessoas a guardarem na memória o que viram ali, e o astrônomo.
Se você não consegue ver uma
estrela que apontam no céu, desvia o olhar por um tempo e volta lá que verá com
mais clareza. Ele falava sobre observação do espaço, mas achei um ensinamento
válido de forma geral.
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