A viagem de BH a
Brumadinho que levava uma hora durou quase o dobro do tempo. O trânsito para
chegar foi explicado por dois motivos: tem muita gente trabalhando na cidade
desde o rompimento da barragem em janeiro e tem muito mais carros dos moradores
nas ruas. Por um ano a Vale vai pagar mil reais para cada pessoa que vive ali.
“Os supermercados estão cheios, a lanchonete tem fila, muita gente parou até de
trabalhar. Não sei o que vai acontecer quando esse novo salário acabar, mas
hoje vivemos assim”, contou o motorista logo depois de se desculpar pela
sujeira que cobria o carro dele. Uma camada de poeira de terra deixa tudo
amarronzado, pelos muros há pichações como “Não foi tragédia, foi crime”, a
ponte sobre o rio Paraopeba tem fitas brancas amarradas na grade e a estação de
tratamento da água foi desativada.
Os funcionários do
hotel, taxistas, guias, todos se dispõem a conversar sobre o ocorrido com uma
gentileza que na minha cidade não tem mais. Naquele sotaque mineiro que quando
falam entre si torna quase difícil para uma carioca acompanhar a prosa, mostram
toda a alegria em nos receber de novo. Inhotim viveu dias com mais funcionários
do que visitantes, contou o Douglas. “Não espera um ano para voltar não, Bruna,
vem de novo logo.” Quem estava no centro da cidade quando chegaram as primeiras
mensagens sobre o problema na mina do Córrego do Feijão narra a incompreensão -
“começamos a correr pelas ruas, mas para todos os lados porque nem sabíamos por
onde fugir ou o que realmente estava acontecendo.” A lama percorreu mais de cem
quilômetros e matou 243 pessoas na contagem até agora. “A cidade é pequena, né,
então todos perdemos algum parente ou amigo”. Em Inhotim, totens com frases
como “Exerça Presença” reforçam a importância de estarmos de novo ali. O
instituto não foi atingido, os jardins, as obras e os animais seguem compondo
um dos lugares onde eu sou mais feliz no mundo. As salas do Miguel Rio Branco
provocam reações na pele, o lago com o pavilhão True Rouge muda o ritmo da
minha respiração, a parede da Adriana Varejão inspirada no desabamento de um
hotel continua lá.
A 140 quilômetros dali,
em Barão de Cocais, Graça também continua no hotel, Soraya na papelaria e
Andrea na sorveteria. As minas de Gongo Soco reúnem diversas lendas e histórias
de uma riqueza que já gerou sete quilos de ouro por dia. “Vem para cá conhecer
as ruínas, são lindas!”. O convite se torna singular nesse momento porque as
ruínas às quais Andrea se refere são das antigas fazendas do império, mas a
qualquer momento podem surgir novas. Equipes acompanham dia e noite a
movimentação de um talude que, quando desabar, pode causar uma vibração e
romper mais uma barragem da Vale, espalhando lama composta por resíduos de
minério por toda a região. Desde fevereiro a sirene de perigo já tocou três
vezes. Os moradores do bairro mais próximo – classificado como Zona de Autossalvamento
- foram removidos deixando para trás até os animais de estimação, e a população
da cidade passou a conviver com faixas laranja nas calçadas indicando a rota de
fuga. Vivem esperando o alerta. Carros em locais estratégicos para levar quem tem
dificuldade de locomoção reforçam o plano de refugiar em quarenta minutos cerca
de 6 mil moradores nos Pontos de Socorro.
A pedido da Defesa
Civil, Andrea fechou a sorveteria no dia do simulado para que todos pudessem
participar, mas dali ninguém foi. Preferiram usar a folga para fazer faxina ou
ficar em casa, as pessoas não acreditam que o pior vá acontecer. O marido dela
tem certeza de que a barragem não vai romper por causa da sua fé, mas ela não
consegue pensar assim. “Me sinto sob ameaça todo o tempo como se eu fosse refém
e não tivesse dinheiro para resgate. Nem durmo, minha filha estuda em BH e pedi
para ela não vir mais. Sei onde são os Pontos de Socorro, mas e se eu ficar tão
nervosa na hora que não consiga correr? Se precisar ajudar os idosos e as
crianças, como vai ser?” Na última semana Andrea passou a fabricar menos
sorvete do que o usual porque não sabe o que vai acontecer se a barragem se
romper - se ainda haverá energia elétrica na sorveteria, se haverá pessoas para
tomar sorvete, se haverá a sorveteria.
Por um misto de fé e
estatística, Soraya também não acredita na destruição pela lama. “Tem dez por
cento de chances de acontecer, e os outros noventa? Temos que pensar neles”.
Para ela, a Defesa Civil está sendo cautelosa porque teria que arcar com a
responsabilidade de uma terceira tragédia em Minas se não fosse e a mídia está
dando um peso muito grande e fazendo parecer que Cocais virou uma cidade fantasma.
“A vida segue normalmente por aqui. Ficam noticiando um desastre e os bancos
fecharam, os turistas não vem mais, nós precisamos trabalhar, tem que parar com
isso. Estamos bem informados e pedimos a Deus para não ter a trepidação”. Seu
único medo é que as pessoas se desesperem na hora da fuga e esqueçam as
orientações, que os pais entrem em pânico se as crianças estiverem na escola e
precisarem ir para Pontos de Socorro diferentes dos deles. “Não existe nenhuma
recomendação para deixarmos a cidade. Até tocar a sirene eu só saio daqui se
vier a polícia”.
No último simulado de
evacuação só 26% dos moradores participaram. Graça não foi, nem
pretende ir a lugar nenhum mesmo que venha a lama. “Eu vou para onde, minha
filha?”. Com 67 anos, ela está há quinze em Cocais. A família é de Itabira, e
sozinha já renderia um filme. “Minhas irmãs são todas casadas lá, minha mãe tem
Alzheimer, minha sobrinha vivia aqui comigo até ontem, mas foi embora junto com
os últimos hóspedes, uns sacoleiros de Friburgo. Ela não aguentaria ficar mesmo
não, tremia que nem vara verde. Vai passar um tempo com o pai, que só pensa em
encontrar os assassinos do filho morto no mês passado. Agora me diz: eu vou pra
lá? Quem vai pagar minhas contas aqui? Só saio se a Vale arrumar outro hotel
para eu trabalhar. Pode vir o Exército, podem me prender, eu não saio.” Mesmo
sozinha no lugar, que fica ao lado do rio, ela não tem medo. “Abro a porta à
noite, já peguei ladrão, sou pequena, mas valente!”
O dono da gráfica
embaixo do hotel também não saiu, nem os funcionários da vidraçaria ao lado. Os
da oficina também estão lá, o padre ficou na igreja, a família que morava em
frente foi embora por conta própria. A maioria dos removidos era da região de
Socorro, muitos conhecidos de Graça. A voz se altera ao contar que saíram sem
nada, de repente, e não podem voltar, ficaram lá as roupas, os móveis, cavalos,
cachorros, galinhas. “Mas sabe quem tem ido lá? Os assaltantes, estão saqueando
tudo. Outro dia teve uma manifestação aqui, tinha uma faixa que dizia que a
Vale mata tudo. Mata gente, mata animal. Vai matar nossa cidade!”
Andrea queria ir embora.
Há dois dias manda para mim imagens de divulgação de Barão de Cocais destacando
as coisas boas do lugar, fotos de cachoeiras e trilhas com a frase “Isso a
mídia não mostra!”. Ela fica por não saber o que fazer com os funcionários e
estabelecimentos que tem por lá. Já estava sofrendo os efeitos da crise econômica,
agora não tem nem dinheiro para demitir mais funcionários. “Quando o Forum
mudou de lugar acharam que era teatro da Vale, mas quando os bancos saíram
daqui fiquei angustiada. Eu achava que a lama seria igual a jogar um balde de
água no chão, mas o tenente explicou que não vai ser que nem enchente. A água
vai embora, lama não. Acontece que as contas também não vão embora. O que vai
ser de nós? Pode vir a Defesa Civil mandando fechar que não vou. Traz a polícia
aqui e explico que pago imposto e não recebo nada em troca, dependo só de mim.
Vou fechar como?”
Pedi a elas para me
avisarem se escaparam bem quando o talude desabar - se houver comunicação em
Cocais. Enquanto isso, as três continuam por lá com a mesma frase: “a vida não para não,
uai”.
Quatro meses depois da
tragédia em Brumadinho os investigados estão soltos, a multa aplicada pelo
Ibama não foi paga e a Polícia Civil declara que o inquérito criminal em
andamento já permite apontar a hipótese de homicídio com dolo eventual – quando
se assume o risco de cometer o crime.
Nós também continuamos
aqui, esperando.
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