Diferente de todos os nossos
guias até então, Juanito não era atencioso nem cortês, nas primeiras horas
falava de forma apressada as informações sobre Buda, hinduísmo, os franceses e
mariposas, fazendo uma confusão na minha cabeça superaquecida enquanto
andávamos pelo museu de Siem Reap. O prédio enorme e bem montado contrastava
com o entorno de casas pequenas e simples, e logo percebi que não era a única
construção grandiosa dedicada ao turismo na região. Nos últimos dez anos, mais
de cem hotéis estrangeiros surgiram por ali para hospedar os turistas
interessados em conhecer Angkor Wat, um complexo arqueológico de templos tão
espetacular que, se não fosse a temperatura de quebrar termômetro e a umidade
do momento, eu teria ficado admirando até decidir se é mais deslumbrante do que
Machu Picchu.
Foram os espanhóis que batizaram
Juanito assim. Seu nome verdadeiro ele escreveu no chão de areia, provando ser
impronunciável para nós não-cambojanos. Quando entendeu essa dificuldade,
decidiu ser Juanito para os latinos, Ivan para os russos, e indisponível para
os franceses – que não aceitam erros e não ensinam a língua deles. Todos esses
idiomas ele aprendeu sozinho. Quer dizer, para o espanhol teve uma pequena
ajuda do Julio Iglesias.
Assim como outros países da
Indochina, o Camboja era uma colônia francesa com um governo de marionete até o
fim da Segunda Guerra Mundial. A independência foi concedida em 1953, mantendo
a monarquia como regime, e logo o país se viu envolvido na Guerra do Vietnã -
por lá chamada de “Guerra dos Americanos”. O território era usado como rota vietcongue
e bombardeado pelos Estados Unidos, e um golpe militar em 1970 deu início a uma
guerra civil que fez piorar ainda mais a situação já difícil. Os cambojanos
lutavam entre si, lutavam contra os vietnamitas, e em 1973 o partido comunista
chegou ao poder sob liderança de Pol Pot. O Khmer Vermelho, que eu me lembrava
dos tempos de Jornal Nacional com Cid Moreira, implementou uma reforma social descrita
pelos livros de história como o regime mais letal do século XX, um genocídio
que custou a vida de mais de 2 milhões de pessoas. Hoje, 60% da população do
Camboja tem menos de 25 anos.
Pol Pot fechou escolas,
hospitais, fábricas, extinguiu o sistema bancário e a propriedade privada,
proibiu qualquer religião e dizia que os pais estavam contaminados pelo
capitalismo, logo, não podiam criar seus filhos. As famílias eram separadas, as
pessoas mandadas para as fazendas coletivas e os intelectuais eram perseguidos.
“Quem trabalha nas plantações de
arroz tem marcas nos pés, os soldados que carregam armas pesadas tem marcas nos
ombros”. Juanito tinha 20 anos quando viu os pais serem assassinados pelo
governo. “Eles foram identificados como intelectuais porque usavam óculos,
tinham as mãos sem calos e os pés limpos porque usavam sapatos.” Decidiu então se
juntar aos guerrilheiros. Terminada a guerrilha e nomeado general, ele voltou à
sua cidade natal. As pessoas buscavam suas famílias separadas e escreviam seus
nomes nas portas das casas onde tinham vivido para que os sobreviventes
soubessem quem estava ali para continuar a história. Ele reencontrou alguns
parentes, recomeçou como comerciante, mas perdeu tudo o que conseguiu juntar. Foi
quando decidiu procurar amigos em Siem Reap, cidade a poucos quilômetros dos
templos de Angkor Wat.
A lenda local conta que as ruínas
foram descobertas por acaso por um francês que caçava borboletas na floresta, o
que contraria um pouco provas mais cientificas que atestam a presença de
pesquisadores ocidentais por ali em data bem anterior à bucólica e inocente cena.
Incontestável era que finalmente o clima de paz no país colocava Angkor como
rota turística, e alguém precisaria se comunicar com aqueles europeus,
americanos, indianos, russos... A maioria dos guias só falava inglês, e Juanito
queria falar espanhol. Sem internet, sem cursos ou livrarias, ele foi até a
farmácia e pediu todos os remédios que tivessem bulas traduzidas. Devorando
posologias e modos de usar, só faltava aperfeiçoar a pronúncia, resolvida com
um CD do Julio Iglesias que ganhou da irmã funcionária da embaixada
francesa.
“Eu trabalho uns dois ou três
dias com os turistas. Se trabalho, ganho salário, se não trabalho não ganho.
Não tenho férias nem aposentadoria, mas tenho hospital, que o governo dá, e se
eu morrer vão me cremar. Aqui somos cremados, por isso temos a pele assim
escura”, ele ri, “diferente dos vietnamitas, que são enterrados e por isso são
brancos! A cada vida nós voltamos mais escuros.” Juanito, Ivan ou o nome
impronunciável cambojano não se preocupa nem almeja mais nada. Há quem veja
isso como filosofia budista.
Até 1950 não se registravam as
crianças no Camboja. Eram tempos de guerra, os pais escreviam a data de
nascimento nas paredes das casas, mas a chuva apagava então ninguém contava as
idades. Para saber se já deviam ir à escola, os professores checavam se a
criança conseguia passar a mão por cima da cabeça e alcançar a orelha do lado
oposto. Caso conseguisse, já devia ter uns 6 anos e podia começar a estudar.
Hoje os jovens não aprendem na escola nada sobre o Khmer Vermelho. O primeiro-ministro,
ex-aliado de Pol Pot que ajudou a derrubar o governo, está no poder desde
então, há 30 anos. Juanito estranha ele ter um Iphone 8, mas o defende por ter
participado de mais de trezentas batalhas contra os americanos e lutado pela
paz no Camboja. “Além disso, vou reclamar com quem, o presidente dos Estados
Unidos? Falar com o presidente da China? Com esses não dá, o máximo que posso
fazer é falar com os deuses então é o que faço!”, ele diz. “E vamos andando
porque tenho que chegar em casa. Adotei uma criança de 8 anos. A Angelina Jolie
adotou um filho aqui também, você sabia?”.
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