15.11.19

Juanito

Logo que cheguei ao Camboja pensei que a saudação era parte do treinamento dado pelo hotel aos funcionários. “Como está sendo seu dia?”, o rapaz perguntou, e ficou parado me olhando, sorrindo, esperando a resposta. O lugar parecia um oásis com aquela piscina e ambientes refrigerados que prometiam amenizar o calor que já batia os quarenta graus, e responder apenas “bom” pareceu pouco. Não porque meu dia estivesse “maravilhoso” (eu só havia pegado um minúsculo avião até ali), mas porque seria deselegante devolver só uma palavra apressada a quem me recebia com uma reverência de palmas das mãos juntas na altura do peito e um inclinar de cabeça sorridente. “Está ótimo”, respondi, “chegamos agora do Vietnã e amanhã vamos conhecer os templos”. Nós sempre planejamos os lugares que vamos conhecer nas viagens, e de surpresa vem as pessoas.

Diferente de todos os nossos guias até então, Juanito não era atencioso nem cortês, nas primeiras horas falava de forma apressada as informações sobre Buda, hinduísmo, os franceses e mariposas, fazendo uma confusão na minha cabeça superaquecida enquanto andávamos pelo museu de Siem Reap. O prédio enorme e bem montado contrastava com o entorno de casas pequenas e simples, e logo percebi que não era a única construção grandiosa dedicada ao turismo na região. Nos últimos dez anos, mais de cem hotéis estrangeiros surgiram por ali para hospedar os turistas interessados em conhecer Angkor Wat, um complexo arqueológico de templos tão espetacular que, se não fosse a temperatura de quebrar termômetro e a umidade do momento, eu teria ficado admirando até decidir se é mais deslumbrante do que Machu Picchu.

Foram os espanhóis que batizaram Juanito assim. Seu nome verdadeiro ele escreveu no chão de areia, provando ser impronunciável para nós não-cambojanos. Quando entendeu essa dificuldade, decidiu ser Juanito para os latinos, Ivan para os russos, e indisponível para os franceses – que não aceitam erros e não ensinam a língua deles. Todos esses idiomas ele aprendeu sozinho. Quer dizer, para o espanhol teve uma pequena ajuda do Julio Iglesias.

Assim como outros países da Indochina, o Camboja era uma colônia francesa com um governo de marionete até o fim da Segunda Guerra Mundial. A independência foi concedida em 1953, mantendo a monarquia como regime, e logo o país se viu envolvido na Guerra do Vietnã - por lá chamada de “Guerra dos Americanos”. O território era usado como rota vietcongue e bombardeado pelos Estados Unidos, e um golpe militar em 1970 deu início a uma guerra civil que fez piorar ainda mais a situação já difícil. Os cambojanos lutavam entre si, lutavam contra os vietnamitas, e em 1973 o partido comunista chegou ao poder sob liderança de Pol Pot. O Khmer Vermelho, que eu me lembrava dos tempos de Jornal Nacional com Cid Moreira, implementou uma reforma social descrita pelos livros de história como o regime mais letal do século XX, um genocídio que custou a vida de mais de 2 milhões de pessoas. Hoje, 60% da população do Camboja tem menos de 25 anos.

Pol Pot fechou escolas, hospitais, fábricas, extinguiu o sistema bancário e a propriedade privada, proibiu qualquer religião e dizia que os pais estavam contaminados pelo capitalismo, logo, não podiam criar seus filhos. As famílias eram separadas, as pessoas mandadas para as fazendas coletivas e os intelectuais eram perseguidos.

“Quem trabalha nas plantações de arroz tem marcas nos pés, os soldados que carregam armas pesadas tem marcas nos ombros”. Juanito tinha 20 anos quando viu os pais serem assassinados pelo governo. “Eles foram identificados como intelectuais porque usavam óculos, tinham as mãos sem calos e os pés limpos porque usavam sapatos.” Decidiu então se juntar aos guerrilheiros. Terminada a guerrilha e nomeado general, ele voltou à sua cidade natal. As pessoas buscavam suas famílias separadas e escreviam seus nomes nas portas das casas onde tinham vivido para que os sobreviventes soubessem quem estava ali para continuar a história. Ele reencontrou alguns parentes, recomeçou como comerciante, mas perdeu tudo o que conseguiu juntar. Foi quando decidiu procurar amigos em Siem Reap, cidade a poucos quilômetros dos templos de Angkor Wat.

A lenda local conta que as ruínas foram descobertas por acaso por um francês que caçava borboletas na floresta, o que contraria um pouco provas mais cientificas que atestam a presença de pesquisadores ocidentais por ali em data bem anterior à bucólica e inocente cena. Incontestável era que finalmente o clima de paz no país colocava Angkor como rota turística, e alguém precisaria se comunicar com aqueles europeus, americanos, indianos, russos... A maioria dos guias só falava inglês, e Juanito queria falar espanhol. Sem internet, sem cursos ou livrarias, ele foi até a farmácia e pediu todos os remédios que tivessem bulas traduzidas. Devorando posologias e modos de usar, só faltava aperfeiçoar a pronúncia, resolvida com um CD do Julio Iglesias que ganhou da irmã funcionária da embaixada francesa. 

“Eu trabalho uns dois ou três dias com os turistas. Se trabalho, ganho salário, se não trabalho não ganho. Não tenho férias nem aposentadoria, mas tenho hospital, que o governo dá, e se eu morrer vão me cremar. Aqui somos cremados, por isso temos a pele assim escura”, ele ri, “diferente dos vietnamitas, que são enterrados e por isso são brancos! A cada vida nós voltamos mais escuros.” Juanito, Ivan ou o nome impronunciável cambojano não se preocupa nem almeja mais nada. Há quem veja isso como filosofia budista.

Até 1950 não se registravam as crianças no Camboja. Eram tempos de guerra, os pais escreviam a data de nascimento nas paredes das casas, mas a chuva apagava então ninguém contava as idades. Para saber se já deviam ir à escola, os professores checavam se a criança conseguia passar a mão por cima da cabeça e alcançar a orelha do lado oposto. Caso conseguisse, já devia ter uns 6 anos e podia começar a estudar. Hoje os jovens não aprendem na escola nada sobre o Khmer Vermelho. O primeiro-ministro, ex-aliado de Pol Pot que ajudou a derrubar o governo, está no poder desde então, há 30 anos. Juanito estranha ele ter um Iphone 8, mas o defende por ter participado de mais de trezentas batalhas contra os americanos e lutado pela paz no Camboja. “Além disso, vou reclamar com quem, o presidente dos Estados Unidos? Falar com o presidente da China? Com esses não dá, o máximo que posso fazer é falar com os deuses então é o que faço!”, ele diz. “E vamos andando porque tenho que chegar em casa. Adotei uma criança de 8 anos. A Angelina Jolie adotou um filho aqui também, você sabia?”.

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