24.11.19

O que cantar ao mundo inteiro


Mais cedo tinha visto o Zico dizer na TV que futebol é um assunto de família, uma paixão que os pais transmitem aos filhos em cada partida que assistem juntos na TV, nos jogos em que levam as crianças aos estádios e nas histórias que contam daquele campeonato de mil novecentos e lá vai muita bolinha. Deve ser por isso que ela não sabe nem a cara do Gabigol, não entende que tanto jogo acontece em uma semana. Seu  pai veleja, velejadores não torcem desse jeito, ninguém no mar fica pulando girando colete salva-vidas no ar entoando gritos de guerra e gastando sinalizador.

Estava surpresa com a mobilização das pessoas para aquela final. “É a final da Libertadores!”. Eu sei, mas você vai para Lima por isso? Pensou até em viajar no dia para fugir da bagunça. “Vamos no show do Skank à noite?” “Noite, tá louca? Não vai dar para andar se o Flamengo ganhar!”.
   
As ruas estavam vazias como se fosse Copa do Mundo (“é muito mais importante do que Copa do Mundo!”) Pelo bairro, bares fecharam as portas, cientes de que não dariam conta de flamenguistas em êxtase. Ambulantes e policiais se preparavam para receber os torcedores na praça e se encaixavam nas janelas dos restaurantes e bancas de jornal para assistir à partida nas TVs. Ela foi ao cinema. Foram oitenta minutos de silêncio sepulcral. “Essa cidade vai explodir”, pensou. Até que alguém fez 2 gols nos 3 minutos finais do jogo.

As pessoas chegavam de todos os lados, todas de vermelho e preto, com bandeiras maiores do que elas, cornetas, cervejas e abraços ensopados pela chuva que qualquer inocente apostaria que espantaria a comemoração. Um senhor com uma máscara de urubu na cabeça soltou um grito no meio do shopping, sozinho, de repente. Um garoto caminhava para o BG cantando olhando para o céu sem ninguém ao lado, sorrindo para si mesmo. Mulheres andavam em um trote meio pulo-meio dança mexendo os braços ao som de um axé que não tocava. Abrigados sob a marquise do Braseiro fechado ou soltos no meio da praça, centenas de homens pulavam e cantavam os gritos da torcida repetidamente sem se importar com a dor de garganta do dia seguinte. Ainda poderiam ser campões em outro campeonato no dia seguinte. Se abraçavam e abraçavam quem passasse pela frente, sambavam nas poças lotadas de chuva e cerveja e latinhas e sacos plásticos e sabe Deus mais o quê. Estouravam fogos em qualquer direção, faziam Stories e tiravam fotos e àquela altura tudo já era uma grande mistura de gente, líquidos, fumaças, alegrias, desabafos, extravazamentos e tudo mais que se carrega dentro de si. Ela só parou para ver. E no meio daquela gente toda, de novo ele apareceu. Quantos anos tem que se encontraram naquela mesma praça em uma vitória daquele mesmo time? Era uma época em que saíam muito, por qualquer motivo, qualquer celebração. Nunca mais se reencontraram desde que se deixaram. Ela o acompanhou com o olhar, calma, só achando graça daquela visão naquele lugar. Notou que a mão dele estava ligada à outra mão de uma mulher, e de repente ele virou. Ela deu tchau, ele voltou. “Parabéns!”. “Eu não sou Flamengo”, ela pensou, mas só sorriu. “Ela é Flamengo?”, ele pode ter pensado. Ou “há quanto tempo”? Ou “você de novo aqui”? Ou pode não ter pensado nada. Talvez só depois lembrado, em meio a uma coisa qualquer - “nossa, como eu te amava”.

Ela ficou ali na festa, contagiada pela chuva caindo, amigos chegando. É preciso torcida nessa vida. É preciso vibrar. É preciso raça, esforço, dedicação, garra, mas é preciso coração. Alguma coisa tem que te mover alucinadamente, te tirar do prumo, te despertar. É preciso paixão nessa vida, por qualquer coisa. Se joga nessa vida pra se apaixonar. Vale a pena.

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