Foram trinta e seis dias,
trinta e fuckin seis dias – bipolares, sim, mas mantendo uma hashtag gratidão no
pensamento o tempo todo. "Sou muito privilegiada, tenho salário, posso trabalhar
de casa, minha família está saudável, moro sozinha , vai passar, faço yoga, sairemos
melhores, vamos distribuir amor, fazer doações, olha tudo de bom que temos,
conta comigo". Grrrrruaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh! Um dia acordei desencaixada de mim mesma. De novo enxaqueca, de novo vou espremer laranjas, fazer ovo, lavar
panelas, essas roupas malditas continuam penduradas nesse varal, não se
auto-passam? Custa? Saiam agora daí e vão pras gavetas. E que inferno de tanto
lixo eu produzo, é lixeira reciclável, lixeira orgânica, não aguento mais amarrar
saquinhos, colocar sapato, dispensá-los, lavar a mão, dane-se a nojeira eu vou
largar esse lixo aí e que venham as mosquinhas imbecis, quiçá baratas e ratos
do Big Brother.
Vou assinar o Pay Per View do Big
Brother, comprar todo o estoque de vinho da cidade e beber vendo o Babu até
acharem uma vacina, me demitam. Julia me deu um livro de aniversário no qual a
protagonista ficava sedada por 1 ano testando todos os tipos de ansiolíticos,
farei isso. Não, não farei, odeio o efeito grogue dos ansiolíticos, odeio até
Dramim e Polaramine. Odeio todos os remédios. Não, não odeio todos os remédios,
amo os remédios, até o de piolho se ele realmente curar os contaminados. (Quem
inventou isso?)
Preciso sair, decido me revoltar,
levarei minha cadeira de praia para a praça e ficarei lá sentada no sol lendo
Elena Ferrante. Preciso pegar sol, estou pálida com olhos de panda, irritada
como... eu mesma irritada. Marcelo me impede: “não é um bom exemplo”. Dane-se. “Acharão
que você é Bolsominion”. Porra. Volto para casa, penso em empurrar as paredes,
fazer invertidas até colocar os pés no teto, podia chorar? Gritar no
travesseiro? Vou gritar pela janela mesmo não sendo oito e meia. Tento ler a
Piauí, preciso de novos assuntos. Coronavírus na pagina 1. Na pagina 2. Na 3 também.
Bolsonaro na pagina 4. Jogo a Piauí pela janela, levanto da rede, vou fazer
comida, ralar cenouras, anda logo Rita Lobo, como se faz rosbife? Por que esse
forno desgraçado nunca liga? Penso em ligar
para os meus amigos, desisto de ligar para os meus amigos, vou espalhar
mensagens para meus ex-namorados, dizer que amo todos, quem responder primeiro
ganha. O forno finalmente acende, que sorte de todos nós, passo a temperar
alimentos para aquecê-los a 180 graus. Já está acabando o feriado, pelo amor de
deus? Não, Bruna, nós não vamos estudar sobre São Jorge, não pensaremos em festas
populares, não produziremos na-da hoje. Não sentaremos nessa cadeira – que sorte,
tá vendo? – ergonômica com seu descanso para pés trazido do escritório enfeitando
a sala que era tão arrumadinha e com uma iluminação de casa, não de home office
onde nunca escurece. Não faremos nada
hoje. Sentaremos nesse sofá, veremos um filme bobo, largaremos esse celular e,
sim, admitiremos que alguns dias são uma merda até pra quem sabe que está bem
pra caramba. Vai passar logo. Esse mau humor.
O telefone toca. “Não posso falar
hoje, estou irritadíssima, não quero saber, amanhã eu ligo.”
Apita a mensagem da minha mãe: “não
tem problema, é difícil mesmo, eu estou aqui, te amo.”
E então, três dias depois, consigo,
enfim, aceitar a partida e me despedir de mais uma pessoa tão querida. Olha, Oswaldo, é
como o seu Ho'oponopono, né? “Eu te amo. Eu sou grato. Me perdoa. Eu sinto
muito.”
There is a crack in
everything
That's how the light
gets in