11.4.20

Diário de uma pandemia - vol V

Dia 31

Tem uma coisa acontecendo com o tempo, não dá tempo de fazer nada do que planejei. Leio a coluna do Gregorio sobre o tema e quase respondo por direct para ele – combinado, ninguém produz nada nessa quarentena para não deixar os outros culpados. Mas seria mais uma mensagem para ele ler, ao pegar o celular já veria um meme, depois outro, uma live, lá se foi a tarde. Hoje, ao invés de fazer aula de yoga, fiquei assistindo a uma aula de yoga. Uma hora nisso, hipnotizada. Despertei do mantra com a minha tia avisando que amanhã ao meio-dia teremos Zoom de Pascoa com todos os primos, em seguida o Andrea Bocelli cantará na Catedral de Milão e às três da tarde o padre Omar voará sobre nossas cabeças abençoando a cidade. Eu só queria assistir A Máfia Dos Tigres, não vai dar tempo nesse domingo.

Noto que meu cabelo também é estranho. Como ele pode oscilar mais do que meu ânimo? Se não saio de casa, não mudo o shampoo, todo dia faço tudo sempre igual, não pego sol, nem sal nem vento, como ele pode um dia estar bem e no outro acordar péssimo? Meu cabelo tem hormônios. Um sistema emocional.

Diariamente recebo apoio de amigos em países com situação melhor: o da Itália me deseja força contra Bozo, o da Espanha pergunta quais medidas estamos tomando no combate ao presidente, dos Estados Unidos chega a pergunta – é verdade que teve um golpe aí e encontraram uma cura para o governo?  Ainda não, Maria, seguimos tentando manter a calma mediante o pânico ignorando o que ele comanda, batendo panelas e gritando às 20h30.   

É bem cansativo presenciar eventos históricos como esses realmente. A humanidade ao meu redor começa a se dividir entre otimistas e pessimistas – os que acham que sairemos dessa mais humanos e os que dizem “para de palhaçada sociológica-espiritual, mete essa máscara na cara e manda o Bill Gates financiar logo essa vacina”. Essas são, claro, as mães em casa com os filhos e as avós longe deles. Eu concordo que quem não acreditava que uma pessoa sozinha poderia mudar o mundo nunca suspeitou que alguém comeria restos de um morcego na China.

Entre uma tentativa e outra de ligar o forno para cozinhar meus brócolis recebo uma estranha mensagem de número desconhecido.  (Em um mês já controlei uma infestação de cupins em casa, dei três aulas online de como fazer unhas e mantive uma equipe remota de pé, mas ligar o forno de primeira, sigo sem conseguir. ): “Pow tu robo a conta mlk eu pago vacilou” ou algo por aí. Mais uma tentativa de forno, dez minutos cortando abóbora, chegam 35 mensagens de teor semelhante originárias de números aleatórios. Acho prudente desligar o telefone. 1 reunião por Teams, “tá travando, fala de novo, você está no mudo”. 2ª  reunião, “gente desliga o microfone, muito chiado, sinal tá ruim”. Está entediada? Mais outra então - “compartilha a tela, cuidado com o Whatssapp aberto, mandei aí, por email ou mensagem? Por Skype, ah ta.” Religo o celular 2 horas depois. 245 mensagens e 15 ligações sobre o roubo da conta. Estou sendo invadida dentro de casa, via celular, por golpistas de português duvidoso. É um recado do cosmos? “Falei pra se isolar, po&%@, desliga essa m*r#a”. Não posso, tenho 3 canais para manter no ar e uma mãe judia. Que nem é judia, mas é como se fosse. A Vivo recomenda trocar meu número de telefone. Já estava tudo tão fácil mesmo...

Causo um terror cibernético ao fazer isso, espalham-se fake news de que meu celular foi invadido, meu número clonado, Bruna Leaks (eu não pedi nudes). Tento apenas dar parabéns para um primo, não me atende. Sou expulsa de grupos (minha família foi a pioneira nessa ação...), preciso vencer a desconfiança para ser aceita por quem me ama. “Prove que é você”. Poupo meus amigos de segredos compartilhados, não precisam lidar com esse passado agora. “Friends é melhor do que Seinfeld. O Paul é mais legal que o John. Eu não acredito no Suriname.  Não sei mergulhar de cabeça e, não, não é só dobrar os joelhos e dar impulso.” Retomo meu mundo. Alguns, ah que pena, ficaram de fora. Julia pergunta se agora usarei esse número novo para sempre. Nada é mais definitivo, Rulia, não posso garantir isso em meio a tanta instabilidade. A partir de uma pandemia e um Whatssapp zerado sem back up decido criar um novo mundo. Pelo menos no Meu Mundo.

Lena acredita que eu sou eu e me conta do filho de 20 anos que, tendo que escolher uma casa para passar a quarentena, optou pela da namorada. “Não posso viver sem ela”, justificou. Suspiramos juntas – “ah,  a juventude... Deus nos livre!” De tão intenso e sufocante já basta um ensaio de fim do mundo. Nos reserve, por favor, para o pós-apocalipse, a sorte de um amor tranquilo (com sabor de fruta mordida por alguém não contaminado).

Penso em todas as canções de amor sendo reescritas como as marchinhas machistas e músicas canceladas. Diz o Chico: Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas / Despem-se pros maridos / Bravos guerreiros de Atenas / Apenas depois de confirmarem que estão há 14 dias em quarentena. A Paula Toller:  Eu vejo seu pôster  na folha central / Beijo sua boca depois de passar álcool gel na pagina / Te falo bobagens. Sem contar a Cigana do Raça Negra que parece feliz pisando sobre ele - só espero que descalça tendo deixado os sapatos fora de casa – ou a Garota de Ipanema e seu doce balanço a caminho do mar – por favor ressaltando que o fará apenas quando a praia for liberada, todas as garotas resolvem ir passear no calçadão, já houve registro de briga quando duas estavam paradas conversando, uma terceira queria passar, com a questão dos 2 metros de distancia e a areia interditada precisou se jogar no meio da rua para seguir o cooper, o que o fez xingando alto e cuspindo gotículas.

Quando Roberto receberá de novo seu amigo Erasmo Carlos para um abraço despreocupado no palco? Amigo será coisa pra se guardar higienizada debaixo de sete chaves?

Qualquer dia, amigo, eu volto a te encontrar. Serei eu mesma, melhor.

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