23.4.20

Diário de uma pandemia - vol VI (A cólera nos tempos do amor)

Uma bolinha de fliperama em forma de mim. Um leão no zoológico – pelo tamanho, uma leoa anã desnutrida. Uma mulher com TPM presa há horas no trânsito num dia de verão em que está atrasada.   

Foram trinta e seis dias, trinta e fuckin seis dias – bipolares, sim, mas mantendo uma hashtag gratidão no pensamento o tempo todo. "Sou muito privilegiada, tenho salário, posso trabalhar de casa, minha família está saudável, moro sozinha , vai passar, faço yoga, sairemos melhores, vamos distribuir amor, fazer doações, olha tudo de bom que temos, conta comigo". Grrrrruaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhh!   Um dia acordei desencaixada de mim mesma. De novo enxaqueca, de novo vou espremer laranjas, fazer ovo, lavar panelas, essas roupas malditas continuam penduradas nesse varal, não se auto-passam? Custa? Saiam agora daí e vão pras gavetas. E que inferno de tanto lixo eu produzo, é lixeira reciclável, lixeira orgânica, não aguento mais amarrar saquinhos, colocar sapato, dispensá-los, lavar a mão, dane-se a nojeira eu vou largar esse lixo aí e que venham as mosquinhas imbecis, quiçá baratas e ratos do Big Brother.

Vou assinar o Pay Per View do Big Brother, comprar todo o estoque de vinho da cidade e beber vendo o Babu até acharem uma vacina, me demitam. Julia me deu um livro de aniversário no qual a protagonista ficava sedada por 1 ano testando todos os tipos de ansiolíticos, farei isso. Não, não farei, odeio o efeito grogue dos ansiolíticos, odeio até Dramim e Polaramine. Odeio todos os remédios. Não, não odeio todos os remédios, amo os remédios, até o de piolho se ele realmente curar os contaminados. (Quem inventou isso?)   

Preciso sair, decido me revoltar, levarei minha cadeira de praia para a praça e ficarei lá sentada no sol lendo Elena Ferrante. Preciso pegar sol, estou pálida com olhos de panda, irritada como... eu mesma irritada. Marcelo me impede: “não é um bom exemplo”. Dane-se. “Acharão que você é Bolsominion”. Porra. Volto para casa, penso em empurrar as paredes, fazer invertidas até colocar os pés no teto, podia chorar? Gritar no travesseiro? Vou gritar pela janela mesmo não sendo oito e meia. Tento ler a Piauí, preciso de novos assuntos. Coronavírus na pagina 1. Na pagina 2. Na 3 também. Bolsonaro na pagina 4. Jogo a Piauí pela janela, levanto da rede, vou fazer comida, ralar cenouras, anda logo Rita Lobo, como se faz rosbife? Por que esse forno desgraçado nunca liga?  Penso em ligar para os meus amigos, desisto de ligar para os meus amigos, vou espalhar mensagens para meus ex-namorados, dizer que amo todos, quem responder primeiro ganha. O forno finalmente acende, que sorte de todos nós, passo a temperar alimentos para aquecê-los a 180 graus. Já está acabando o feriado, pelo amor de deus? Não, Bruna, nós não vamos estudar sobre São Jorge, não pensaremos em festas populares, não produziremos na-da hoje. Não sentaremos nessa cadeira – que sorte, tá vendo? – ergonômica com seu descanso para pés trazido do escritório enfeitando a sala que era tão arrumadinha e com uma iluminação de casa, não de home office onde nunca escurece.  Não faremos nada hoje. Sentaremos nesse sofá, veremos um filme bobo, largaremos esse celular e, sim, admitiremos que alguns dias são uma merda até pra quem sabe que está bem pra caramba. Vai passar logo. Esse mau humor.  

O telefone toca. “Não posso falar hoje, estou irritadíssima, não quero saber, amanhã eu ligo.”
Apita a mensagem da minha mãe: “não tem problema, é difícil mesmo, eu estou aqui, te amo.”

E então, três dias depois, consigo, enfim, aceitar a partida e me despedir de mais uma pessoa tão querida. Olha, Oswaldo, é como o seu Ho'oponopono, né? “Eu te amo. Eu sou grato. Me perdoa. Eu sinto muito.”

There is a crack in everything
That's how the light gets in

Um comentário:

zélia disse...

Ler estes Blogs....é desligar o pensamento do momento Parabéns