5.4.20

Diário de uma pandemia - vol IV

Dia 25

Combinamos que seríamos os primeiros a entrar no apartamento do outro, caso um de nós morresse, para pegar tudo o que não pode ser encontrado. Organizamos onde deixar para facilitar a busca. Inicialmente achei que falava de drogas e objetos sexuais, depois entendi que era algo muito mais sério: tudo o que escrevemos e nunca publicamos. Prometemos nunca ler, queimar. Talvez até usando álcool gel.

Nunca imaginei que combinaria isso com alguém sendo a ameaça tão cedo e tão real. Não pretendemos morrer, mantemos firmes nossos pulmões e corações, mas às vezes tememos. Sempre tememos, mesmo antigamente. Já sentíamos medo três semanas atrás, mas agora nossos temores são compartilhados. Às vezes nosso sangue parece que corre para as extremidades, viramos uma massa de bolo murcha, mas passa. O importante é que passa. Tudo passa. O porteiro do hotel já dizia isso pra Julia Roberts quando o maior problema dela era o casamento do melhor amigo.

Promete que quando essa pandemia acabar faremos tudo de novo? Viajaremos para Salvador para viver as letras das músicas, dançaremos em cada baile charme e buraco da Lapa num sábado à noite bebendo GT do isopor, teremos outro Carnaval, daremos todos os beijos e abraços contidos nesse espaço e quiçá em toda a nossa vida contida até aqui. Teremos outra vida onde priorizaremos o que amamos, não o dinheiro nem nossos medos. Passaremos horas no mar, largados na areia sem pensar se aquilo ativa vitamina D, faremos só pela felicidade, porque ativa meus poros, meus pelos, hormônios, faz correr meu sangue. Promete?

Promete que você ainda vai aplaudir meus sucessos, me amparar nas derrotas e falaremos de emoções como fazemos hoje? Que as conversas ainda terão “hoje estou me sentindo assim”? Eu prometo continuar atenta aos seus sinais e, na dúvida, perguntarei. Sempre pensarei "pode estar tendo um momento difícil, não vou reagir agora”. Se não puder responder com amor deixarei para depois, quando puder. Nunca esqueceremos o que estamos vivendo, nem na pressa. Ainda saberemos priorizar e regular auto-exigências. Para sempre cuidaremos bem de nós.

Sabemos que ao final dos dias que vivemos nada nos levará de volta. Ninguém volta, toda experiência é um caminho sem retorno ao ponto de partida. Cuidaremos do nosso caminho, nunca sabemos para onde estamos indo.

Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.*

Prefiro a quadra da Portela.
Prefiro assistir no cinema.
Prefiro a Toscana.
Prefiro-me gostando das pessoas também.
Prefiro o mar (acho que por isso não conheço as cachoeiras).
Prefiro as maritacas que descobri que voam aqui perto fazendo estardalhaço.
Prefiro fazer as pazes, mesmo por mensagem.
Prefiro bolo de chocolate e queijos - qualquer queijo.
Prefiro música ao vivo.
Prefiro ler na areia.
Prefiro vento.
Prefiro silêncio.
Prefiro comprar o aspirador-robô porque já prefiro Miosan a Salonpas.  
Preferia estar te fazendo rir, nem sempre dá.
Prefiro ser sincera.

(Mas pode ir armando o coreto e preparando aquele feijão preto
Eu to voltando)


*Wislawa Szymborska

3 comentários:

zélia disse...

Sensacional....Bárbaro...cd palavra bate no fundo e reflete o que sent

Ana disse...

Choro tanto que nem consigo escrever.

rerodriguesmartins disse...

Ahhh to amando cada semana! Que não dure muito mais, mas que seja o suficiente para um pouco mais! ☺️ 🙏🏼 Hoje escrevi pra uns primos assim: Desabafo de confinamento - 1

Eu poderia ficar semanas e até meses sem te encontrar, mas agora que me pedem para não sair de casa, eu sinto sua falta. Sinto muito a sua falta!

A gente pode fazer chamada de vídeo, compartilhar mensagens e situações que estão acontecendo na nossa casa e em muitas outras casas. Podemos dividir angustias, nos apoiar, gravar vídeos, áudios. Seguir as recomendações da escola, mandar memes engraçados e fazer contagem sobre os dias que estamos confinados, mas... lembrar dos momentos que passamos juntos, com frequência ou mesmo que esporadicamente, é o que de fato me mais sentir feliz.

Fotos e vídeos passados ou planos pro futuro, lembranças do que já passou ou aspirações para a pós-pandemia, nos fazem viver o presente com tranquilidade e esperança no que estar por vir. No valor que vamos dar para cada abraço, cada encontro, cada momento que vamos nos sentir livres em poder escolher o que fazer, sem qualquer ameaça invisível. 🍃❤️

Ah! E eu ri vários momentos! E eu acho que vc vai gostar de ir à cachoeira. Vale a pena! 😉