15.11.09

Capítulo 2

Tinha vontades – uma caixa de Caran d’Ache, relógio Cuco, sanduíche de carne assada no pão de forma, sino. Vestia uma calça de moletom, considerava calças de moletom sinônimo de conforto como pantufas (ninguém tem pressa de pantufas) e tinha acima de tudo vontade de não ter pressa. Para não ter pressa tinha vontade de ter tempo, e desde que começou a prestar atenção nos que exclamavam como era possível já ser novembro considerou ser tempo substantivo masculino subjetivo. Era novembro porque acontecera outubro, e antes setembro e agosto e assim o contrário de sucessivamente e só causa desconfiança essa contagem em quem não esteve ali, o que acontece com bem mais freqüência do que dizem os cartões de ponto das indústrias fedorentas. Antes ela própria não estava, e quando esteve estava tudo tão estranho que escolheu se sentar na nuvem.
De lá viu o cantor cantando na beira do palco. Ele também estava sentado quando engasgou com as palavras e num soluço a lembrou do tanto de amor que há. Alguém no palco tem uma platéia e um disco e curumins e um amor e canta, e ela sentiu vontade de cantar. Juntou à caixa de Caran d’Ache, ao relógio Cuco, sanduíche de carne assada no pão de forma e ao sino mais essa, sem saber se era também lembrança boa ou promessa de felicidade possível. Pensou se essa seria uma vontade-chave, e deu-se conta de que chaves na língua portuguesa abrem portas.

Um comentário:

Bruno Quintella disse...

Gostei dela por ficar alta por um tempo e conseguir também, claro, acima de tudo, vontade de não ter pressa. Sentadinha na nuvem e vestindo outras pequenas nuvens de algodão nos pés, as pantufas, que também de nada têm de apressadas: uma pausa, um intervalo entre a terra e o céu.

E gostei mais dela depois que entendi que o tempo que ela precisava, não dos casais acovardados, mas o dos exaustos, daqueles que estão desorientados por causa das razões, explicações, desculpas e resposta confortáveis. Aja, tempo!

Mas sugeriria que ela não selasse mais as cartas à moda antiga, sabe? Se para isso ela usasse suas duas línguas, a da boca, e a da pátria, entenderia talvez que sua vontade, não a chave, mas a de cantar, abriria outras portas...


Bruno