“A maioria dos dias do ano são indiferentes. Eles começam e eles terminam, sem nenhuma grande lembrança para marcar. A maioria dos dias não tem nenhum impacto sobre o curso de uma vida. 23 de maio foi uma quarta-feira."
Anos depois ela estava novamente escrevendo sobre filmes. Não porque aquele fosse sensacional, era uma bobagem - como todos os nossos tropeços. Mas ele disse que a história era triste.
(arte de relógio digital volta 4710 dias)
O Uno Mille não subia a ladeira do Fashion Mall. Subiria, se ela soubesse soltar com o pé esquerdo a embreagem à medida em que pressionasse com o direito o acelerador e no meio dessa manobra minimamente calculada o infeliz da frente não parasse o carro, pondo tudo a perder. “Eu nunca vou conseguir fazer isso”. E outros motoristas até cantavam enquanto passavam a primeira, segunda, terceira, reduziam da quinta para a quarta, “é automático!”. “Eu nunca vou conseguir fazer isso”. Esgotada na poltrona, vivia a retomada do cinema nacional em épocas pré-lei seca e arrastão no túnel assistindo à Andrea Beltrão e Daniel Dantas desfilarem o alfabeto em uma tórrida paixão. Não bastasse o desgaste no estacionamento, tudo flutuava na tela até que o casal termina. E não volta no final! Se cruzaram na praia como dois conhecidos, mãos dadas com novas pessoas que – quem são aqueles? Você amava aquela mulher! De quem é esse filho? Filme brasileiro é uma droga.
(arte de relógio digital anda 4710 dias para frente)
Se ela concordasse que o filme é triste atestaria não ter aprendido nada com os tantos perturbados e descrentes que a deixaram por incapacidade de se comprometer, os tais que sempre voltam ao parque para lhe dizer o quanto ela é especial. Os tais de aliança no dedo e medo nenhum, dúvida nenhuma, questão resolvida, pós-ela. Os que gostavam, mas faltava alguma coisa, que na melhor das hipóteses buscam justificativa para remover a ponta de culpa que nem existe, ou desejam tudo de bom ainda estupefatos com a nova rotação da Terra depois do encontro certo, o que pôs tudo nos eixos. Ou o que tirou todas as certezas e preconceitos do lugar como que por mágica. Os que passam de mãos dadas na praia.
Se a mocinha não estivesse lendo Dorian Grey na deli, se tivesse ido ao cinema, se estivesse de mau humor na hora em que o outro entrou, continuaria acreditando mais em Papai Noel do que no amor. E ele... Se Summer não tivesse gostado tanto, mas achado que faltava alguma coisa, estaria de mau humor em outra hora em qualquer deli lendo Dorian Grey. Se ela realmente acreditasse menos no "algo a mais" do que em Papai Noel nem teria visto outras pessoas na deli. E ele...
Salvo masoquistas, adeptos do auto-flagelo, quem, ó céus, escolheria passar por tudo de novo, permitiria que tamanho mal o acometesse? Ele. É uma opção? Pode ser esse o grande castigo por Eva ter mordido a bendita maçã: padecereis de taquicardia por toda a eternidade ainda que pregue pelos quatro cantos a debilidade da paixão. Ou o mal foi a causa – o que essa moça tinha na cabeça? Adão. E um creme da Lanza que prometia deixar os cabelos mais sedosos e sedutores, logo ela que achava isso submissão. E ele vai passar por tudo de novo, e o pior: não há garantia alguma de que um dia vá achar que é isso e ser isso.
Vai ver ele acha que 500 dias são melhor que nada. Senão são só dias. Senão não tem filme, e é um depois do outro que faz com que ela aprenda a subir ladeira. Uns quatro mil depois, até cantando.
2 comentários:
"se ela soubesse soltar com o pé esquerdo a embreagem à medida em que pressionasse com o direito o acelerador e no meio dessa manobra minimamente calculada o infeliz da frente não parasse o carro, pondo tudo a perder."
Meu Deus, sou eu! A primeira vez em que desisti de dirigir foi bem assim. Puxei o freio de mão, desci do carro e disse à querida amiga de todas as lutas: - assume, pelo amor de Deus, porque eu não tenho competência pra isso. O início de muitos fracassos...
Bruna, seus textos, como sempre...Leio silenciosamente, mas hoje não deu.
Ah, e o "Vin de la maison" tá um escândalo de oportuno.
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