22.12.20

História para Natal de gente grande

Como se 2020 já não estivesse suficientemente difícil, Noel bateu o pé que o Natal precisaria existir. Não era negacionismo, ele não ficou passeando pelas ruas da Lapônia achando tudo exagero da Mídia, sua preocupação era legítima: temia que sem abraços, ceia, árvore da Lagoa, especial do Roberto Carlos a tristeza se espalhasse mais do que o patógeno mutante de Londres.  

De nada adiantaram os apelos da Mamãe Noel argumentando que não era momento para exigir mais de si, que ele era grupo de risco pela idade e também, sejamos francos, pelos quilinhos extras acumulados depois de anos de contrato com a Coca Cola. Noel encasquetara que não só o Natal precisaria existir, mas teria que ser ampliado, inclusivo, queria presentear também os adultos. Aceitou até mudar de patrocinador, passou a tomar Coco Legal, fazer pães de fermentação natural em casa, os duendes montaram uma esteira para que o bom velhinho incluísse caminhadas na rotina matinal e melhorasse a saúde. Ninguém ficaria de fora, ele precisava fazer com que as crianças sorrissem e os adultos acreditassem.

Mas os duendes estavam exaustos, já mal dariam conta dos pedidos das cartinhas, imagina expandir a operação! A equipe contabilizava muitas baixas, mesmo trabalhando em home office alguns se contaminaram, outros estavam enlouquecidos com filhos em casa, faxina, comida, home school, era inviável demandar deles mais do que já produziriam em condições antigo-normais.

Como se 2020 já não estivesse suficientemente estranho, Noel decidiu convocar reforços e marcou um Zoom com os anões da Branca de Neve, afinal, são dos poucos personagens do imaginário infantil acostumados ao trabalho e, com a mina fechada, estavam ociosos precisando de dinheiro e distração.

 

Interior, P.N. no escritório agora equipado com internet via fibra e ring light das Kardashian.

NOEL

Olá a todos, obrigado por terem aceitado meu convite.

MESTRE

Papa....

NOEL

Mestre? Acho que travou.

MESTRE

Vocês me ouvem? Internet está péssima hoje aqui. Ainda tem essa obra no vizinho, serra o dia inteiro!

SONECA

 Estamos ouvindo.

MESTRE

É uma honra ajudá-lo, Papai Noel. Ninguém solta a mão de ninguém depois de saber em quem votou.

ATCHIM

Eu fiquei tão animado quando recebi o invite! Gratidão, Papai Noel. Foi um ano de muita discriminação em relação a mim, mas fica tranquilo, faço PCR toda semana, desde os anos 30 sou assim, não é vírus, não saio de casa desde março.

ZANGADO

Ah, mas já pode sair, população pirou, vão nem notar você.

PAPAI NOEL

Zangado, que bom vê-lo, hohoho. Não sabia se você aceitaria participar, sei como essa época do ano te deixa. Amigo oculto, arroz de passas...

ZANGADO

E a Globo manter a Retrospectiva 2020? Agora me fala, quem quer rever 2020? Mas eu tenho que ir com os outros, né, Papai Noel, sou parte de um coletivo há ó... tempos! Mas olha, saudades de cantar aquela musiquinha chiclete, eu era feliz e não sabia, só lidava com bruxa mal resolvida, Rivotril em maçã. E agora? Nem me chamem mais de “Zangado”, “Zangado” é o cacete, meu nome é Zé Indignado. Sai na rua pra ver esse bando de gente com máscara no queixo sem noção de distância lotando bar. Comecei até a ler livro de mindfulness para aguentar.

PAPAI NOEL

Onde está o Feliz?

ATCHIM

No Havaí. Mudou-se para lá em 2018, se tivesse ficado aqui seria contradição em forma de anão.

PAPAI NOEL

Achei que vocês morassem todos juntos.

VÁRIOS

Snkjhdlfnc.lddjçfmdkvçordozjçlkdr.

MESTRE

Tem que falar um de cada vez! Dunga levantou a mão.

DUNGA

 

PAPAI NOEL

Está mudo, Dunga.

ZANGADO / ZÉ INDIGNADO

Ele é mudo. Mandou pelo chat. Você tem que se esforçar para entender todo mundo online e ainda recebe mensagem pelo chat.

DUNGA (no chat)

Morávamos juntos, mas na quarentena alguns foram passar uma temporada na serra, alugaram casa. Dengoso faz yoga todas as manhãs, começou uma horta, vê no TikTok dele! Mas também vai ajudar no Natal, é só dizer o que precisamos fazer.

MESTRE

Eu quero me oferecer para ir com o senhor entregar os presentes, Papai Noel. Fiz um IGG essa semana, tenho anticorpos.

ZANGADO / ZÉ INDIGNADO

Mania de querer sair da casinha! Até inventar que precisa ir ao banco ele inventa, dá para acreditar? Abrimos conta no Nubank, quem ele acha que engana? Não vai sair. Os presentes vão pelo Rappi.

PAPAI NOEL

Muita gentileza sua, Mestre, mas nesse ano ficarei apenas supervisionando os entregadores terceirizados do trenó. Temos que preparar os EPIs, deixarão os presentes nas portas das casas, já tabulamos as cartinhas das crianças, linha de montagem está a pleno vapor seguindo todos os protocolos. As instruções para vocês eu vou mandar lá no grupo.

DUNGA (no chat)

E os adultos? Eles nem acreditam, o que é o presente?

PAPAI NOEL

Em 2020 os adultos ganharão Escolhas.

TODOS

Feliz Natal, Papai Noel!

PAPAI NOEL

Bom Natal, um feliz Natal, muito amor e paz pra vocês pra vocês.

(efeito sanduiche-ichi do Zoom no final)

 


29.11.20

Diálogos pandêmicos II (ou A Vida Mentirosa dos Confinados)

 - Foi maravilhoso, três dias inteiros no mato, boi, vaca, um potrinho descontrolado, lago...

- Quero ver as fotos!

- Não tirei. Não ia postar mesmo, e vai que vazam os arquivos do meu ICloud, um dia alguém vê, iam me julgar porque viajei na pandemia.

- Fez bem. Onde era?

- Em Sebollas. Até fomos na cidade conhecer...

- Passearam em Sebollas?!

- Não passeamos andando pelas ruas, fomos de carro, nem tivemos contato com as pessoas. Sabia que Sebollas tem um conflito de identidade? Também se chama Inconfidência e em algumas placas diz que fica em Minas.

- Eu também diria que sou de Minas se ficasse no limite do território, me livraria de ser estado do Rio. 

- Inconfidência é porque Tiradentes ficava muito por lá, parece que tinha uma amante. Um pedaço dele está enterrado na cidade, por isso o museu.

- Vocês foram ao museu?

- Não, estava fechado por causa da Covid. E também porque deu cupim.

- E o Tiradentes?

- Não deu cupim nele, o pedaço está na igreja.

- Mas vocês foram vê-lo na igreja?

- Não, estava fechada também! Olhamos só da porta, não tinha ninguém.

- Mas tinha o Tiradentes!  

- Mas ele não morreu de Covid, não ia nos contaminar!

- O Tiradentes foi cancelado! Não pode vê-lo, visitá-lo, prestar qualquer tipo de homenagem. A verdadeira história foi revelada, ele tinha outros interesses próprios.

- Caramba, eu não sabia! Mas não vi nenhum pedaço dele, só fui à cidade comprar fósforo e nem a chamei de Inconfidência em hora nenhuma, sempre falo Sebollas.

- Ok então.

- Mas não conta para ninguém. Também se você contar não vão acreditar porque ninguém sabe que estamos aqui nos vendo.

- Nunca falei para ninguém que temos nos encontrado também. Para não incentivar os outros a sair por aí se encontrando com pessoas, só por isso. Inclusive eu estava pensando que podíamos aproveitar que ninguém sabe que estamos aqui e assistir a um filme do Woody Allen, o que você acha? Se ninguém sabe que estamos juntos é como se não estivéssemos vendo o filme.

- Não tenho problema com o Woody Allen. Não comenta com ninguém, não podemos falar isso por aí, mas não acho que ele tenha feito nada do que foi acusado.

- Ele casou com a filha da mulher dele.

- Isso não o torna Flor de Lis. Eles podem ter se apaixonado, o amor é assim. O Caetano casou com a Paula quando ela era adolescente, ninguém cancelou ele. Mas não estou julgando o Caetano! Nem vamos ficar falando isso alto.

- O Camelo se apaixonou pela Mallu quando ela saía da escola. Ele foi um pouco julgado, mas os fãs de Los Hermanos não se importaram.

- Você é fã do Los Hermanos?

- Você é?

- Podíamos também assistir ao filme novo do Polanski!

- Antes posso aproveitar para trocar essa playlist e colocar Zeca Pagodinho? 

- Não pode ouvir Zeca Pagodinho?

- Faixa Amarela. Adoro essa música, mas tem aquela parte de dar um castigo nela, uma banda de frente, quebrar cinco dentes e quatro costelas.

- Putz.

- Você soube do Gil?

- Ah meu deus, foi cancelado?

- Não, vai fazer uma live amanhã.

- Ufa. Troca a playlist e vamos dançar, coloca Michael Jackson também, mas abaixa o som.

27.10.20

Diálogos pandêmicos I

 - Eu acho que você devia priorizar os amigos imunes.

E passou a fazer uma lista de pessoas conhecidas que já tiveram Covid com quem eu poderia me encontrar nos fins de semana como fazíamos A.C.

- Esses últimos tiveram a doença logo no começo então não sei como está a imunidade deles, mas os outros devem ter IGG alto, você pode encontrá-los até em casa mesmo.

Falava isso enquanto andávamos pela praça, mais uma onde fico sentada em um banco depois de passar álcool 70 em tudo para encontrar pessoas como há tantos anos faz o Carlos Alberto de Nóbrega – sem a parte do álcool, imagino.

- Eu acho X meio chato.

- Prefere meio chato ou meio contaminado?

 

********************************

- Como eu vou conhecer alguém novo? Quase um ano trancada em casa e de repente resolvo beijar um desconhecido do Tinder? Tanto esforço para não me contaminar em vão, lambo logo uma gôndola e acabou a tensão de doença.

- Você tem postado muito pouco no Instagram, tem que gerar mais conversa. E abrir esse perfil, tem que expandir as possibilidades, aumentar os directs.

- Mas aí começa uma conversa, marca um encontro...

- Ao ar livre primeiro...

- Ao ar livre primeiro e peço um PCR se engrenar?

- Claro. Ou sorologia, mas eu tenho preferido PCR. Conheço um técnico do Bronstein que me dá o resultado em 24 horas.

- Você pegou o técnico do Bronstein?

- Não! Ele é que me falou sobre esses novos protocolos de encontros.

- Odeio aplicativo, essa coisa de flerte por escrito é perigosa, a maioria das pessoas é um pouco analfabeta.

- Mas também um pouco solteira e bastante carente, finge que não viu, que foi o corretor automático. Está mais fácil pegar gente do que negociar compra de carro, vai por mim. Já fez uma lista de ex que você possa recuperar? Faz essa revisão.

- Eu prefiro pegar Covid a pegar ex.

- Não podem ser todos tão graves, elimina os que você pode ter alguma comorbidade. A quem você já é imune?

- Como testa isso? Tem muito falso negativo.

- Olha! Um amigo mandou mensagem aqui, ele é ótimo, vou te encaminhar.

- Meme?

- Não, o amigo. Ele estava vendo uma pessoa, mas é só coordenar.

- Vendo uma pessoa viva eu espero. Quando passamos a falar “estou vendo alguém”?

- Desde que paramos de “sair com alguém”.

- Parece Sexto Sentido.

- Você pode falar “tenho recebido alguém”, mas vai parecer sessão espírita da mesma forma.

- “Recebido” nem pensar! Alguém na minha casa? Só se a pessoa já entrar pelada porque com roupa contaminada não vai. Tira a roupa na porta, cria um clima, chega num strip.

- Isso pode ser legal!

- E como coordena a não-exclusividade, de cara já se conversa sobre quantas pessoas cada um está “vendo”?

- É o jeito, o novo normal está mais honesto. Se cada um pegar duas pessoas dá para manter uma frequência boa porque precisa dos 14 dias de isolamento ou fazer o PCR.

- Quatro pessoas alternadas na pegação? Se começarmos a montar planilha pra transar junta logo esse povo e Noronhe-se, chama até o técnico do Bronstein.

- Será que o técnico do Bronstein é interessante? Nunca consegui ver com aquela roupa de astronauta. Aliás, aquela roupa é um fetiche. E ele deve ser imune.

30.9.20

Homilia

Ela já entrou na igreja atrasada carregando um bebê, as tralhas do bebê, a bolsa, um presente e a outra criança junto porque não podiam faltar àquele sacramento festivo. Era a primeira vez que a filha entrava em uma igreja de forma consciente, a única outra provavelmente tinha sido no seu próprio batizado, cinco anos antes, quando ela e o marido se comprometeram a criar a menina na religião católica já que tinham submetido os padrinhos a um curso de padrinhos e os convidados a uma passadinha na missa em pleno verão carioca. Apesar disso, a filha jamais ouvira qualquer história sobre Deus, Jesus, Maria ou qualquer personagem relacionado.

- Mãe, vai demorar muito?

- Shhh! Não, meia horinha e acaba. Fica quietinha.

Nenhuma criança de 5 anos sabe o que é “fica quietinha nesse banco sem fazer nada por meia hora”. Ela nem sabia o que era meia hora, ontem, hoje ou amanhã, a noção de tempo das crianças já era toda atrapalhada mesmo antes da pandemia.

- Posso ver Ipad?

- Não, presta atenção no que o padre está falando, ele está contando uma história.

- Quem é o padre?

- (Meu Deus, minha filha nem sabe quem é o padre, me perdoa, Vó). É aquele de preto ali na frente.

- E quem é aquele homem sem roupa?

- Shhhh! Amor, fala baixinho, ouve o padre, não tem ninguém sem roupa.

E rapidamente já foi checando ao redor, são tantos escândalos escabrosos envolvendo Igreja católica que não custava se certificar de que nenhum tarado doente estava por ali.

- Aquele homem naquela cruz, Mamãe, a estátua.

- (Eu realmente preciso começar a ensinar alguma coisa sobre religião para essa criança.) É Jesus, filha, filho de Deus. (Se ela perguntar quem é Deus esse teto vai cair sobre mim.)

- Ele está machucado?

- Está porque colocaram ele na cruz, os machucados são as chagas onde estão os pregos e a coroa de espinhos.

- Quem colocou ele ali?

São em momentos como este que os pais de antigamente apenas diriam “não é da sua conta’, “isso não é coisa para a sua idade” ou “vai brincar com seu irmão”, desconversariam, mas os pais de hoje em dia não. Os pais de hoje em dia acham importante explicar as coisas, eles justificam, tem conversas e elaboram argumentações para quem só se importaria com a Elza, a Ana e o Olaf.

- Jesus foi traído por um dos seus amigos e crucificado.

E então a criança, obviamente, começou a chorar. Não um choro contido, aquele apertozinho no coração, mas um berreiro. Sentia as chagas de Jesus, a dor da traição, até a dor do apedrejamento de Maria Madalena se àquela altura já soubesse também dessa barbárie. O padre olhava, os pais da bebê na pia batismal olhavam, os padrinhos com a vela, os convidados se viravam para trás, talvez até as freiras no mosteiro acima olhassem condenando.

- Meu Deus, calma!

- Eu não gosto de Deus!

- Shhhh! Hehehe....

- Ele não fez nada?

- Levanta, Amor, sai da igreja, vamos lá fora, desculpa, licença, calma, para de chorar pelo amor de Deus.

- Não tem amor de Deus, ele não ajudou o filho dele?

- Ele não podia ajudar...

- Como não podia ajudar? Eu não quero que os meus amigos me coloquem na cruz, você e meu pai não vão poder me ajudar?

- Ninguém vai te colocar na cruz, eu garanto, e é claro que nós te ajudaríamos, mas isso não tem como acontecer, foi muito tempo atrás.

- Quando?

- Há dois mil e vinte anos. Quer dizer, há dois mil e vinte anos menos trinta e três, eu acho, há muitos anos, muitos mesmo, isso não acontece mais.

- Os amigos não traem mais?

É o que digo: há bem menos do que dois mil anos, até ainda ali pela década de oitenta  - onde muita coisa duvidosa aconteceu na criação das crianças, como cigarrinho de chocolate, transporte de alunos aglomerados em porta-malas de Caravans, apresentadoras de programas infantis em revistas eróticas nas bancas de jornais, mas ainda se implementava o “porque eu estou mandando” - essa conversa teria tomado outro rumo já no início, essa mãe teria aplicado a ferramenta do pecado e da culpa católica para direcionar a filha para onde quisesse como hoje faz o Felipe Neto e a família estaria sentada aguentando o batizado em silêncio. Mas não...

- Às vezes os amigos traem, mas só os maus amigos, os falsos.

- Foram os amigos falsos do Jesus que colocaram ele na cruz e o pai dele não pôde fazer nada?

- Isso, mas depois ficou tudo bem.

- Ele saiu da cruz e foi para casa?

- Sim. Na verdade... calma, ele fica bem no final, mas morreu e depois voltou a viver e foi feliz para sempre (e falou bem rápido antes que as lágrimas também voltassem, mas como omitir a parte da morte? E se a menina saísse por aí dizendo que Jesus desceu da cruz e saiu andando para casa apesar dos amigos falsos e do Pai impotente, que é onipresente e ela ainda nem sabe?)

- Meu cachorro também vai voltar a viver então?

- (Por que, Senhor, decidi trazer essa criança à Igreja?) Não, filha, seu cachorro virou uma estrelinha, ninguém volta a viver, isso só aconteceu com Jesus. (E com o Jon Snow em Game of Thrones, que seria uma história bem mais simples para eu explicar do que essa droga de novo testamento.)

- Por quê? Ele era especial que nem um príncipe?

- Era mais que um príncipe, ele era filho de Deus! E Deus é muito poderoso.

- Se ele é tão poderoso como não sabia dos amigos falsos? Por que deixou o filho dele ir para a cruz e morrer, ele era mau? E a mãe do Jesus?

- (É virgem, casada com José.) Filha, esquece Jesus, esquece Deus, tudo isso. Sabe aquela estátua de um gordinho sorrindo que a mamãe trouxe de viagem? É Buda. Nós seremos budistas a partir de hoje, vamos agora sentar debaixo dessa árvore e meditar. E meditar é de olho fechado, sem olhar para mais nada. Senta.

- Depois posso ver Ipad?

- Pode.

11.9.20

Diário de uma pandemia - vol XI

Dia 184

Deu errado o teste da vacina mas eu precisava almoçar. Precisava acabar a reunião e resolver o problema da produção, resolver o problema da outra produção também e responder emails. Mas deu errado o teste da vacina. Eu sei, já entendi, efeitos colaterais inesperados, não, não nasceram rabinhos nos testados, deu um problema, suspenderam essa vacina, depois leio com calma. Mas deu errado o teste da vacina.

A piada não funciona, os artistas não conseguem, precisam de plateia, como fazer plateia, cria uma plateia em outro espaço com mais espaço, distancia bem, testa todo mundo, tenta mandar o sinal, joga o áudio das risadas para o estúdio, conseguimos palmas? Temos plateia, quinze pessoas, quinze pessoas? É uma plateia, temos plateia, melhorou a piada. E o beijo? Não pode beijo, como se beija à distância? Não se beija, tira amor do texto, coloca o amor na pós-produção, faz o amor virtual, amor em computação, tanto amor tem sido assim mesmo, deixa o amor. E a vontade de desistir, faz nada não, deixa para depois. Não tem “depois”. O John Lennon estava certo, é isso aqui agora mesmo a vida, “o que acontece enquanto fazemos outros planos”. Mas costumava ser quase tudo para depois, os grandes planos de felicidade. A viagem. A casa. Aquela ideia. Vou ser muito feliz quando chegar o Carnaval. Nas férias. Quando conhecer alguém. Quando as crianças crescerem. Quando mudar de emprego. Quando tiver mais dinheiro. Quando emagrecer. Quando tiver coragem. Quando tiver vacina. Cancelaram tanta coisa que cancelaram o depois. E agora? Isso sobrou, o agora. Mas agora eu não posso ir a lugar nenhum, agora não tem ninguém para me dar a mão. Lamento, senhora, é só agora mesmo. Mas o que eu faço com agora, estou equilibrando os pratinhos para não caírem, vai passar, é um dia a menos agora, agora tem um monte de gente no restaurante, vai lá agora então, mas agora a taxa ainda está alta, quando ela cair eu volto, volto depois. Depois? Já não sei mais que dia é hoje, não sei mais quando é depois. O depois está chegando igualzinho ao agora há uns seis meses. Ou há uns seis anos?

Eu irei ao show. Farei uma festa. Abraçarei. Encontrarei. Dançarei espremida. Beberei pela rua gargalhando encostando em tudo. E se o futuro do presente virar futuro do pretérito? Eu iria. Beijaria. Abraçaria. Mas o futuro do presente chega quando? Eu quero dançar. Beijar. Viajar. Correr. Rir agora. Não quero adiar nem quero mais chorar eu quero viver agora. Tenho medo de esquecer como era, apagar. Vou embaralhar o futuro e o presente de tudo que posso fazer agora.   

2.8.20

Diário de uma pandemia - vol X

Dia 144

Quatro meses e meio e ainda não sei fazer batatas palito no forno. “Não coloca muito azeite”, diz uma irmã, “seca bem antes de cozinhar”, diz a outra. Mais uma tentativa e me rendo à air fryer – o quarto maior amor dos quarentenados depois dos mops, aspiradores robô e da Teresa Cristina.

No primeiro dia de uso do robô passo duas horas seguindo o aparelho pela casa como se fosse um filhote recém-chegado. Em vinte minutos queria devolvê-lo – eu, sozinha, já teria aspirado metade dos cômodos naquele tempo. Donos mais experientes garantem que posso deixá-lo trabalhar sem supervisão, relaxo na segunda vez. Abro um vinho, coloco uma música, estendo meus pés no sofá – ah, a alegria de ter um chão sendo limpo sem meu esforço! Um sorriso de satisfação... bleft-pi-piiiiiiiiii. Cadê o troço? Sigo o apito, tensão pelo estrondo vindo da área, chego à cena de guerra, uma batalha sangrenta onde o sangue é poeira, toda a sujeira contida dentro do antigo aspirador arremessada pelos ares e ele despedaçado no chão. Robô apitando paralisado com rodinhas emboladas em fios de cabelo que comprovam minha tendência acelerada à calvície. Não se sabe se o novato avistou o antigo aspirador e o atacou derrubando-o para marcar território ou se o outro enciumado se jogou sobre o robô cuspindo tudo de imundo que continha dentro de si. Saldo da noite: Bruna, vassoura, pá de lixo e pano de chão. Like old (pandemic) times.

Diferentemente de old times, recebo o email de um evento na França confirmando a realização e informando que, esse ano, posso participar virtualmente. "Entendemos que o banimento de viajantes do seu país para a Europa significa que você não poderá estar presente conosco, mas foi pensando em pessoas como você que criamos uma plataforma online”. Pessoas como eu em dúvida sobre o futuro? Pessoas como eu buscando orientação e perdidas? Pessoas como eu colaborando com o coletivo? Não, pessoas como eu: banidas.

O presidente passa a atormentar emas além de nós, o país segue sem Ministro da Saúde em meio à pandemia, mais um governador se encaminha a Bangu, o prefeito ninguém nunca soube mesmo o que faz, tudo é liberado menos sentar na areia, uns tomam chopp nos bares que restaram enquanto outros continuam evitando até elevador. A vida social passa a ser uma grande clandestinidade, com escapadas generalizadas para encontrar flertes do Tinder ou amigos em praças discretas, a culpa católica se torna pluma se comparada à culpa pandêmica e o julgamento alheio passa a amedrontar mais que o vírus.

Chega o dia de voltar ao estúdio. Um protocolo de segurança nos permite algumas horas confinados no mesmo espaço de onde saímos em março.

- Que horas você vai?

- Depois do almoço.

- Eu também, aviso quando chegar para nos encontrarmos.

OMG, “aviso quando chegar!”, “para nos encontrarmos!”, eu não pronuncio essas frases desde o Carnaval!

A ansiedade prévia causa até insônia. Peguei o carregador do celular? E do notebook? Leva água, lá não tem mais copo. Lá ainda tem água? Nunca mais deram notícias da geosmina. Onde guardei o crachá? Posso sentir fome, não tem mais catering, prepara um sanduíche. Toma um Allegra, evita espirrar. Pode demorar, tem que trocar a máscara a cada três horas, leva umas cinco. Não, exagero, leva três. E um saco plástico para guardar as usadas. Coloca um casaco na bolsa, lembra? Estúdio é frio, te faz espirrar. Pego a mochila de camping, não coube tudo na bolsa.

Na entrada do prédio medem minha temperatura. “Boa tarde, senhora. Trinta e seis e meio, bom trabalho”. “Obrigada. Quer dizer, para você também. Trinta e seis e meio, que bom, né? Tá, deixa pra lá.”

Entro na sala. É um espaço para cem pessoas, vazio. Um silêncio absoluto onde antes eu me esforçava para ouvir meus pensamentos no meio de frases díspares como “fechando esse patrocínio batemos a meta do mês” e “é fake esse nude, a bunda dele não estaria aqui se a cabeça do outro está lá”. Agora ouço o som dos meus passos no piso enquanto caminho entre as mesas com novas marcações alternadas de bloqueio e caixas fechadas com todas as coisas que deixamos para trás.

No caminho para o estúdio passo na praça de alimentação para checar o que restou como se andasse em escombros do pós-guerra. Avisto, na porta do restaurante onde eu almoçava, os funcionários! Sorrimos escancaradamente, apesar das máscaras sabemos que sorrimos, tento conter as lágrimas de felicidade por vê-los e alívio por saber que ainda tem empregos. Como viveremos com essa vontade quase incontrolável de abraçar as pessoas queridas que revemos?

Tudo volta, agora sob os olhares de um fiscal da Segurança de Saúde. “Você gosta dessa tarja? Vocês estão muito próximos. O cenário está lindo! Não sai da sua posição, fala pelo comunicador. Vamos passar o roteiro? Passa álcool nesse equipamento. Não consigo montar meu faceshield, alguém me ajuda! Encaixa essa parte naquela, não, na outra, assim não, do outro jeito, mais inclinado, ah faz para mim, não posso encostar no seu, pronto deu certo, vem aprovar a vinheta, socorro, não vejo nada, passa álcool, não posso andar, está tudo embaçado, pareço míope, como vou trabalhar? Tirou a película de proteção? Não. Aí dificulta”. Ouço minha própria voz como retorno. Vocês me ouvem? Alô, som! Viro o Tim Maia com EPIs. Máscara & Faceshield & Óculos & Fone & 3, 2, 1 Gravando. Eu lembro que o coração batia feliz assim.

Em Berlim, milhares vão às ruas protestar contra restrições impostas pela pandemia empunhando cartazes como "Corona: alarme falso". Os manifestantes negacionistas dizem estar “fazendo barulho porque vocês estão nos roubando a liberdade”. Não sei exatamente quem são os “vocês” a quem se dirigem na indignação, mas penso em também protestar contra quem me atrapalha. “F&*@-se, cólica menstrual!”. “Abaixo a lei da gravidade!”. “Devolvam meu Papai Noel!”. Meus sobrinhos se inspiram: “contra a hora de dormir!”. “Pelo direito de não pentear o cabelo!”.

Não levamos adiante a ideia das passeatas, mantenho em nível pessoal a vontade de “start a revolution from my bed” e sigo vendo a live da Teresa Cristina enquanto corto batatas.

- É TT, mais uma noite.

- É, mas é menos uma noite! Pensa assim.

19.7.20

Diário de uma pandemia - vol IX (Bat-histórias y bat-incertezas)

Dia 130

A ideia era conhecer histórias de maias e astecas, explorar a Riviera mexicana, mas nos apaixonamos de tal forma por Tulum que parecíamos viver um catálogo da Richards, no melhor sentido disso – todas as pessoas eram lindas, todos os dias de praia tinham aquele azul de um Pantone deslumbrante, sorríamos inebriados tomando margaritas em nosso rooftop, mesmo as histórias mais fantasiosas de guias duvidosos em ruínas que por vezes pareciam um pouco disneylândicas nos faziam felizes, para sempre teríamos Chichén-Itzá. E assim fomos nadar, acompanhados por um casal de alemães, em um cenote habitado por morcegos. Quando o instrutor nos mostrou as fotos das cavernas onde mergulharíamos tudo parecia divertidíssimo, aqueles lagos subterrâneos inéditos, excitantes, foi nesse clima que Marcelo olhou a foto dos morceguinhos no teto de uma das cavernas e proclamou a frase clássica da viagem: pero é una película de horror! Tivemos, os quatro e o instrutor, um ataque de riso, vestimos as roupas de neoprene alugadas no local (que só de lembrar hoje me deixam com vontade de pular em uma banheira de álcool 70), pegamos os snorkels e nos jogamos na água. Julia não foi: “não consigo respirar com isso”. Os snorkels, isso. De volta ao Brasil, Lucas contou que o cunhado médico não reagiu bem ao relato da aventura, achou muito imprudente nadarmos em uma caverna com morcegos. Que malucos nós, hahaha, nem sabíamos.

Anos depois alugamos uma casa na praia do Felix para férias de verão. Debruçada sobre o mar, a parte de cima da casa era toda aberta – sala, cozinha, nada tinha porta, parede nem vidro, uma total integração com a natureza que só nos exigia esconder todas as comidas à noite para não serem levadas pelos macacos. Em um mezanino nesse lugar dormia o Lucas. “Lucas, desce, vem dormir com a gente, colocamos seu colchão no nosso quarto”. Não queria, achava que os macacos não o levariam, olha a oportunidade de dormir naquele céu de estrelas entre árvores, só precisava de repelente (temíamos a zyka). Em uma noite Lucas estava lendo, deitado em seu berço esplêndido sob a lua, ouviu umas pegadinhas no chão de madeira, um farfalhar de asas, encarou dois olhinhos admirando-o na natureza – um morceguinho! Talvez um amigo remoto mexicano também em viagem?  

Um dia um chinês na província de Wuhan comeu um morcego, ou comeu um mamífero que comeu um morcego. Essa sequência de “quem come quem” já tinha dado tanta confusão na vida, mas nunca como naquele momento. Morcegos – o cunhado do Lucas estava certo – são notórios transmissores de doenças, e dessa vez a epidemia se alastrou pelo mundo inteiro. A contaminação era exponencial, os danos às pessoas podiam ser fatais, as perdas e o contágio aumentavam mais rapidamente do que a ciência conseguia mapear a patologia e controlá-la mesmo com esforços conjuntos, o único esforço eficaz imediato para não colapsar os sistemas de saúde e dizimar populações seria o isolamento. Foi assim que quem podia se trancou em casa, passou a higienizar qualquer objeto externo e lavar as mãos trocentas vezes por dia sem jamais levá-las ao rosto antes disso.

Em casa era onde eu estava há mais de cem dias quando um morcego entrou pela minha janela. Eu não estava na natureza, a parte dela que existia aqui tinha sido desmatada para construir meu prédio, minha rua, bairro e cidade, eu tinha portas e paredes, não estava em uma caverna, mas no meu sofá e o morcego apareceu assim, sem cerimônia: olá, amiga!

Grito, pulo, almofadas pelos ares, aos tropeços me fechei em um quarto onde ele não entraria e tentei raciocinar o que fazer no meio da madrugada. “Posso abrir as janelas da casa, durmo trancada aqui, amanhã ao acordar ele terá ido embora. Ou não terá ido embora e passará a viver comigo. Não pode ficar aqui nem mais um minuto, é o coronavírus em pessoa na minha sala. No caso, “em morcego””. Eu me confinei, usei máscara, álcool gel, senti saudade, medo, ajudei, aprendi a cozinhar, lavar, passar, vou perder a guerra porque o inimigo entrou pela janela, isso não pode acontecer. Pesquisei no Google “como tirar morcegos de casa”. Uma película de horror. Alguém precisa vir aqui. Não podem ser meus pais, grupo de risco. Lucas! Não vê a rua há quatro meses, terá um choque anafilático. Minha prima, vizinha, já entrou morcego na casa dela. Dormia. O tempo ia passando, os coronavirus já podiam estar por toda a minha casa. Liguei para o maior aliado de pessoas que moram sozinhas quando estão em apuros: o porteiro. “Por favor pede para o segurança vir aqui, estou sendo atacada”. Já não sabia do que tinha mais medo: ser contaminada pelo morcego ou pelo homem na porta que apareceu de botas, sem máscara, com duas mãos lotadas de dedos tocando em tudo que podia esconder o meliante de asas. Eu tentava decorar todos os lugares onde ele passava e encostava para higienizar com álcool 70 depois, se um dia aquela cena de ficção científica terminasse.

Nunca achamos o morcego, supomos que ele voou embora enquanto eu me refugiava no quarto, desde então tenho a certeza de que a qualquer momento ele vai sair de uma gaveta ou pular do bolso de uma calça no armário pedindo abrigo por estar sendo perseguido como exterminador do futuro, o vetor que esfregou a impermanência da vida na nossa cara, o transmissor ensurdecedor da notícia de que temos que lidar com o não saber mesmo que, na crueldade ou maravilha dos fatos, nunca tenhamos sabido e só não dormíamos e acordávamos pensando nisso.

Naquele domingo olhei para o Cristo, aqueles braços abertos que nunca abraçam a cidade, não tinha uma única nuvem no céu. Talvez as areias das praias ainda estivessem mais vazias do que costumavam ser, talvez os bares atendessem menos gente, mas fazia o mesmo calor de todos os invernos que insistiam em não chegar no Rio de Janeiro. Eu ainda não estava na praia como estaria em um domingo de sol até março daquele ano, mas quando desci para repetir o mesmo trajeto que fazia há 18 domingos da nova rotina temporária, a feira de antiguidades estava montada de novo na praça. Ao vê-la brotada ali nem pude dizer que estava “de volta”. Não sei se um dia “voltaremos”. Estava no mesmo lugar onde antes havia uma feira, mas não parecia ser a mesma feira. Ou os meus olhos ainda não eram os mesmos olhos? Nunca mais seriam? Não sei se alguma vez voltamos, mesmo quando repetimos padrões. Não sei o que em nós terá acontecido daqui a um tempo, individualmente e coletivamente. Eu não sei, e às vezes queria poder sair voando daqui. 

Ruídos e comunicação


42-0453. Só isso, fácil de decorar, era o número do telefone da casa de Petrópolis. Eram muitos quartos, a mesa de jantar tinha tantos lugares que brincávamos de Escravos de Jó versão estendida na hora de tirar os pratos, mas para aquela multidão toda agregada ali só havia 1 telefone. Ele ficava na sala, em uma mesinha exclusiva com gaveta para o caderno de telefone, bloquinho para recados e uma cadeira para os falantes demorados. Ninguém demorava porque interurbano era caro, não era para ficar conversando no telefone. Ou vai ver não ficávamos conversando porque ninguém tinha privacidade ali, ou porque tínhamos mais o que fazer lá fora. Fato é que só existia um único aparelho, com aquele pequenino número que jamais esqueci apesar de não saber qual é o meu número atual - nem o de ninguém mais.

O telefone de Petrópolis era de disco e muitas coisas eu não entendo sobre os anos 80, mas entre elas estão saber como víamos TV com aquelas imagens sem definição e como ligávamos em aparelhos de disco. Se o número tinha muitos oitos ou noves, pelo-amor-de-deus não solta o disco antes de dar a volta completa! Escapou o dedo, tinha que começar a “discar” tudo de novo. Com a pressa de hoje eu jamais falaria com alguém que tivesse zero no número, levaria uma eternidade e já naqueles tempos eu gostava de telefone de tecla, achava chique.

Na casa dos meus pais tinha telefone de tecla, de disco e até em formato do Garfield, mas era impossível permanecer em uma conversa inteira sem interrupções, sempre alguém pegaria na extensão e ouviria um berro com potência para avisar em Marte: “desliga, tô falaaandoooo”. Éramos oito pessoas co-habitando o lugar, chegamos a ter três linhas na mesma casa-escritório (já vivi em um home-office em outra era). Era tanto telefone tocando que parecia call center – o que acontece em menor escala até hoje, não entendo quem liga tanto para eles enquanto eu nem tenho telefone fixo em casa.

Outras interrupções de conversa na vida aconteciam pelo maldito fax (aparelho que nunca decifrei e produzia um apito insuportável surgido do nada) e pela conexão de internet derrubada por alguém que tirou o telefone do gancho enquanto outra pessoa estava online. Era razão para assassinato, teríamos que ouvir de novo por minutos aquele ruído de sintonização com ETs até reconectar.

Nosso telefone era prefixo 226, o pior prefixo do país. Nunca dava linha, quando queríamos ligar para alguém era preciso se planejar meia hora antes, tirar o fone do gancho e ir fazer outra coisa, de vez em quando voltar ali para checar se já era possível telefonar - quase como acontecia ao ligar nossos primeiros computadores, que demoravam uma tarde inteira “inicializando” (palavra que nunca existiu fora do Windows). Na primeira vez em que viajei para fora do Brasil contei eufórica que lá nos Estados Unidos tirávamos o fone do gancho e já dava linha imediatamente! Fiquei chocada. Além da falta de sinal, os 226 eram os maiores points de linha cruzada da Telerj, aglomeração. Penso em quantos romances começaram em uma linha cruzada e quantos barracos ocorreram pela mesma razão. Era tanta linha cruzada que existia uma etiqueta sobre quem desligava, assim como a cortesia de orientar quem ligava errado querendo falar com alguém que nós já sabíamos ter um número parecido com o nosso. “Alô, é da casa do Alfredo? Não, você trocou o último dígito, o Alfredo é 2578, aqui é 2570. Ah, valeu.”

Nunca passei trote para o Alfredo, mas poderia ter feito isso. Houve uma fase em que adorávamos passar trotes. Trote é uma diversão tão arraigada na cultura que gera até hoje programas de rádio e televisão. Eu fiz amigos porque passei trotes para eles, emendamos a piada em uma conversa e dali fui até a churrasco na casa deles.
Nessa época não apertávamos Send, o telefone ligava sozinho. O Send apareceu na nossa vida quando passamos a andar pelos lugares empunhando aparelhos cinza com antena externa buscando conexão, deve ter ocorrência de gente que caiu da janela, penhasco atrás de sinal de celular. “No service” era a tradução da nossa frustração. Telefone de tecla virou démodé, eu almejava Startacs, baterias azuis que durassem mais de três horas. Luxo.

Os mais velhos achavam que ligar para o celular era coisa de emergência, falavam tão rápido, como se fossem gastar os minutos, que era como conversar com um narrador de turfe. Deviam pensar que celular era uma evolução do bip - o que era, de certa forma, mas entre eles passamos pelo Teletrim. Pagers. Meu amigo mais rico tinha um Teletrim & uma agenda eletrônica, ele era um ícone de tecnologia e status. No meu tempo de memória isso durou uns três meses, pouco mais que vídeo lasers.
Quando surgiram as linhas com identificador de chamadas, que até aquele momento chamávamos de Bina, a preocupação no meu grupo de amigas era como faríamos para ouvir a voz dos nossos crushes – que na época nem lembro como eram classificados – sem sermos reconhecidas. Sim, fazíamos isso: ligávamos para eles, ficávamos encantadas ouvindo um “alô. Alô? Plaft.” e sei lá o que acontecia depois. Éramos estranhas.

Dizem que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone: “o chefe da folia pelo telefone manda me avisar / que com alegria não se questione para se brincar”. Eu queria tanto receber essa ligação hoje... Mas certamente antes de ligar o chefe da folia mandaria uma mensagem: “oi, posso ligar para você?”. Não se liga mais para alguém sem permissão ou agendamento, falar no telefone ficou para os íntimos ou assuntos graves. Telefone não é mais considerado possibilidade principal de comunicação, é uma espécie de jornal impresso. Eu ainda assinava jornal impresso, no início da pandemia decidi suspendê-lo.
- Mas você conseguiu cancelar seu jornal impresso?
- Sim, liguei para lá.
- Como “ligou para lá”?
- Peguei meu telefone, apertei os números, apareceu uma voz, eu disse o que queria, aconteceu. Como o gênio da lâmpada.
- Não tinha pensado nisso. O site não funciona.

O Whatsapp criou os emojis para dar uma graça às conversas, para poupar palavras ou por acreditar que uma imagem vale mais do que mil delas? Em qualquer alternativa, gerou questões que nenhum gênio do Vale do Silicio supunha crível existir:
- Convidei-o para um chopp e ele respondeu com aquele emoji de coração ao redor.
- Que bom! E quando vão?
- Nunca, né. Resposta péssima.
- Como péssima, ele foi tão amoroso mandando corações!
- Amoroso com ele, aquele é o emoji narcisista – uma pessoa cheia de corações por si mesma.

O que também não funciona é a vida reduzida a videochamadas. São as falhas de áudio dos aplicativos ou o bombardeio de mensagens por todos os serviços que nos faz confundir ainda mais o que já dava problema? Alguém cobra por Whatssapp resposta do que foi perguntado por email e debatido no Messenger com um terceiro elemento. O quarto chega na reunião semanal por Whereby sem nem saber que o  assunto evoluiu – mas ninguém perde um meme recebido em 4 grupos diferentes, Twitter e Instagram.

Os chats em vídeo implementaram a máxima do “quando um burro fala, o outro abaixa a orelha” (nunca entendi a origem disso, mas nunca observei dois burrinhos interagindo.). É quase uma conversa coletiva por Nextel: alguém fala, todos esperam um tempo para ver se acabou a frase e arriscam responder. Invariavelmente dois arriscam ao mesmo tempo, então todos param esperando a deixa – “pode falar, Bruna”. Bruna segue, quem realmente deveria responder fica mexendo a boca até todos murmurarem – “está mudo, Zezinho”. Isso quando todos ativam os vídeos! Nas reuniões em forma de podcast, sem apelo visual e só com vozes vindas do além, você que lute para desenvolver a sintonia máxima da dinâmica fala-responde e o foco.

Freud, Lacan ou algum deles diz que não devemos acreditar na comunicação, que só os tolos lutam por isso. Não existindo a comunicação perfeita - o domínio de que o dito chegará intacto ao destinatário - o emissor está libertado para dizer e agir como quiser, livre da exaustão de supor o efeito que suas palavras causarão do outro lado. “Desprenda-se disso e verá que sua vida ficará bem mais simples”, insiste o oráculo. Eu sigo interpretando papéis e palavras, tão inútil quanto tentar organizar um Zoom aglomerado.

Beethoven, por outras razões, conhecia bem o isolamento e compôs Para O Amor Distante, uma obra de lamentos por uma separação e anseios pelo reencontro. A música ganhou uma nova performance criada pelo On Site Opera onde um duo de pianista e soprano apresenta a composição para o espectador que está do outro lado da linha, ao telefone! A pessoa se inscreve para atuar como a amada distante e receber a ligação de amor. O texto de Para O Amor Distante foi composto por Alois Jeitteles, um jovem médico que trabalhou incansavelmente durante a epidemia de cólera que assolou seu país.

Já que enfrento tantas dificuldades para me comunicar mesmo com tanto avanço na tecnologia, reinstalei meu telefone fixo e aguardo a ligação dos artistas. Falarão em outra língua, mas vou ouvir do modo mais antigo que conheço uma mensagem que vai me deixar feliz.

14.6.20

Diário de uma pandemia - vol VIII (o dia em que não acabou)

Dia 95

E então? Três meses depois, aquelas músicas, livros, amores ainda te sustentam?

Quando começou, calculei três meses. Guiei-me por Wuhan, ficava olhando para os países que lidavam com a epidemia há mais tempo como se fossem spoilers. Sabia que existiriam condições um pouco distintas, mas não imaginava que teríamos aqui diferenças tão drásticas. O Brasil virou uma quadrilha mal organizada sem graça nenhuma. “Caminho da roça! É mentiiiira!”, sai todo mundo se esbarrando no sentido contrário. O foguete da Space X decolou sem me levar.

Entre hipóteses desencontradas e “o culpado é o morcego”, um filósofo inglês arrisca que a doença é uma conspiração dos que perderam seu amor para reatar com os ex, nem que seja por DM. Essa me parece a teoria mais confiável de tudo que se falou até agora.

No início dessa semana tocaram minha campainha no meio da tarde. Não surgíamos na porta de outra pessoa sem avisar, como isso poderia acontecer no meio da quarentena? Amigos que moram nos subúrbios acham graça dessa falta de costume daqui, onde ninguém senta nas calçadas para ver a vida passar nem aparece na casa dos outros sem ser convidado. Levantei no susto, olhei pelo vidro, era um entregador. “É a casa da dona Sirlene?” Não, mas como um entregador está andando pelos corredores procurando a dona Sirlene se ninguém pode entrar no prédio?

Um dia em março fui dormir fazendo piada sobre coronavirus e no seguinte acordei em uma pandemia, foi de repente que tudo se transformou porque eu não estava dando atenção aos sinais. É como se tivesse acontecido agora de novo.

Poucas noites depois da campainha tocar, saí para descartar o lixo e ouvi vozes novas no apartamento da vizinha. Tem... visitas na casa da vizinha? Voltei para a minha, desinfetei a maçaneta, quase coloquei um pano embebido em álcool enrolado na fresta da porta como se vírus fossem entrar que nem baratas pelos vãos. Se espirrarem na janela chega aqui? Fechei as janelas.

Na manhã seguinte fui à feira. Atravessei para ir às barraquinhas como faço há semanas, está muito calor? Havia alguma coisa estranha no ar. Muitas vozes, barulho de carro, um mendigo cambaleante grita frases desconexas, o rapaz do limão me aborda muito de perto, o rabo de um cachorro esbarra em mim, outro vizinho me cumprimenta talvez sorrindo “oi, há quanto tempo!”, tem elementos demais nessa praça. Corro para casa, aperto com a chave o botão do elevador antes cheio de circulares que informavam sobre funcionários contaminados e regras do parquinho, elas sumiram. Tiro o sapato na porta, passo álcool gel, removo a máscara, troco a roupa, bebo água, o celular... que fotos são essas? Minha cabeça está rodando um pouco. Pessoas na praia, na serra, é feriado. Mas... acabou? Suo nas mãos, meu coração está acelerado. Por que tem tanta gente na rua? “O prefeito autorizou.” Que prefeito? Ligo a TV depois de dois dias de pausa na contagem. Cadê a curva de contaminação? Aquela fila é para entrar em um shopping? Sonho há noventa dias com a nossa libertação, ela não seria assim.

Eu também queria dar um mergulho no mar. Será que ainda tenho anticorpos para a água salgada do Leblon? Ainda sei andar de Havaianas na areia? Eu queria vento! Qual o perigo de contaminação – por coronavírus, não hepatite e micoses? E essa culpa? Atravesso a rua para comprar rúcula e sinto como se traísse o movimento, crio justificativas, mas não convenço nem a mim mesma de que preciso cruzar o portão pela rúcula. “Tenho que ajudar o seu Jair da barraca das verduras. Seu Jair leva pra você. Na feira bate sol, tenho que produzir vitamina D. Senta no estacionamento do prédio. São quase cem apartamentos, e se todos sentarem no estacionamento? Organiza um rodizio. Passo dez horas por dia em zooms, como vou organizar condôminos?” Lágrimas. Eu também quero sair de casa.    

Já achamos que sairíamos melhores dessa experiência, lembra? Que faríamos um mundo melhor. Mundo melhor é tão subjetivo. Três meses depois, vamos aceitar que alguns não terão aprendido nada? Eu não sei por que estão na fila do shopping, mas não posso ir lá entendê-los. Posso ficar aqui. Não cabe a nós julgá-los, já é trabalho suficiente cuidarmos dos nossos caminhos e nossas histórias. Não deixemos que isso nos frustre. Nossa expectativa deve ser sobre o nosso papel nesse grupo imenso de seres habitantes do planeta, alguns na fila do shopping, outros no mat intensificando a yoga, outros acordando de noites mal dormidas, fazendo comida, faxina, tarefas que produzam trocado para dar garantia. Quando acabar e houver tanta necessidade reprimida, quando se intensificar a lógica do “eu primeiro que já esperei demais”, tomara que ainda sobre força e calma para os que estão mais acima na pirâmide poderem defender ideais e lutar pelo tal mundo melhor que nós vislumbramos, aquele no qual não cabe mais tanto acúmulo, vencedores, perdedores, onde entendemos que estamos no mesmo barco.

Seguiremos agindo como acreditamos mesmo sabendo que do outro lado existem pessoas iguaizinhas a nós em composição com a mesma certeza de sensatez, lançaremos palavras para reflexão sem a exigência de convencimento, apenas porque temos essa voz e certa capacidade de traduzir o que nos vai por dentro. Senão, parece luta vã – e não é. Como a visão da Médica Sem Fronteiras, que todos os dias salva pessoas da destruição causada por outras idênticas às vitimas e não perde a fé na humanidade - “porque somos muitos médicos e voluntários e humanos dispostos a ajudar e lutar contra o mal. Escolho olhar para esses”. Se ela ainda está lá, como nós não estaremos mais aqui?

Se cuida. This too shall pass.

13.6.20

Contatos imediatos


E quando eu já estava suficientemente cansada, vem o deboche da irmã que se isolou, antes até da geosmina surgir aqui, em uma ilha no Pacifico: “você é louca de ficar nessa cidade. A única coisa que falta acontecer no Rio é ser invadido por ETs”.

Tenho incentivado nossos pais a se entreterem com qualquer coisa, como uma babá que oferece vídeos para as crianças se distraírem enquanto coisas precisam ser feitas - no caso, acharem uma vacina. Essa semana meu pai ficou quase uma hora conversando com um operador de call center. Sabe que o nome do homem é Leo, que Leo não tem feito exercícios físicos, que mora com a namorada, debateram a dificuldade de se manter são na quarentena, o inicio de uma bela amizade.  Por isso até me alegrei quando ele comentou ter passado horas assistindo ao History Channel. “Um programa muito interessante: Alienigenas do Passado”. Eu teria feito a piada “não quer assistir Alienigenas do Futuro para já nos prepararmos?”. Não fiz. Eu hein, mania súbita de ET na família.

Na véspera era eu quem assistia TV, um documentário sobre a turnê de As Cidades do Chico em 1999. Estava tendo um dia péssimo, culpada por senti-lo péssimo quando coronavirusmente estava tudo bem, mas ainda sentindo. Fui melhorando com aquelas músicas, as risadas do Chico, conversas sobre criação, futebol, parcerias, oi? Chico e Bethania disseram que viram extraterrestres? Devo ter entendido errado, voltei a cena. Mais alguém viu esse documentário, eles falaram sobre disco voador em Copacabana mesmo? Google – Bethania + Disco Voador. Que ainda estou sozinho, apaixonado / Como um objeto não identificado / Para gravar num disco voador / Eu vou fazer uma canção de amor. Apenas música, nada sobre abdução.

Liguei para um amigo. Semanas antes interrompera uma conversa nossa com uma expressão de espanto dizendo ter um balão no céu. À meia-noite, na zona sul do Rio de Janeiro, em plena quarentena? “Não se move como um avião, talvez seja um disco voador.” Eu segui falando como se nada houvesse acontecido, no máximo ri da pausa inesperada, não voltamos a isso. Agora precisava compartilhar a cisma. “Tem uma coisa estranha acontecendo. Surgem ETs por toda a parte na minha vida desde aquele dia”. Dessa vez foi ele quem riu: “ao menos parece que testemunhamos a primeira chegada dessa leva.” Não estava entendendo a seriedade.

Sempre acontece nas redes sociais, um assunto que eu tenha falado com alguém ou conversado por Whatssapp surge no feed naqueles links patrocinados. Essa publicidade programática está extrapolando o mundo digital? Existe no ar um algoritmo selecionando nossos assuntos, estamos monotemáticos com pandemia e governo por metadados e não por emburrecimento e pânico?

Abro o Instagram. Esta lá, na postagem de um perfil que sigo: “5 documentários sobre alienígenas que confirmam que o estreitamento do nosso contato com os ETs é uma questão de tempo.” Não estou alucinando. Me rendo. Quanto tempo, gente? Eu estou exaurida de fatos históricos, não quero receber ETs nem que eles sejam idênticos ao do Spielberg, a única novidade que quero é imunidade generalizada (e, se couber bônus de desejo, troca de governo).

Se só me restar a resignação de aceitar o fato da chegada dos ETs, que venham de máscara, tragam mop, aspirador robô, álcool 70 e sua própria comida porque eu não vou fazer faxina nem almoço para mais ninguém.

2.5.20

Diário de uma pandemia - vol VII (Detalhes de uma vida, histórias que eu contei aqui)

Dia 52
Pressure pushing down on me
Pressing down on you, no man ask for
It's the terror of knowing what the world is about
Watching some good friends screaming
"Let me out!"
Insanity laughs under pressure we're breaking


A casa dos meus pais onde cresci sempre foi muito animada, nunca era um ambiente monótono. Eram quatro filhos, duas funcionárias, hóspedes eventuais, agregados fixos, um entra e sai de gente a qualquer hora, ali já voou jabuti pela janela, entregador de pizza já foi recebido por homem vestindo capacete medieval e empunhando espada de ferro, duas crianças já quebraram os braços ao mesmo tempo, o cachorro jantava medalhão ao molho madeira com arroz à piamontese, até incêndios alheios figuram no álbum de feitos daquela casa.

Eu estudava no escritório, comecei a sentir um cheio de queimado forte vindo pela janela, ao olhar para baixo vi o telhado da pequena escola ao lado em chamas. Uma rua inteira podia ter notado, mas fomos nós. Descemos correndo pelas escadas com extintores em mãos, o porteiro tentava fazer funcionar a mangueira de incêndio da garagem, pai e irmão tentavam pular o muro, mãe ligava para os bombeiros, salvamos o lugar. Uma semana depois, meus irmãos viam TV no quarto quando comentaram: ‘cheiro de queimado de novo, né? Também estou sentindo, acho que a Bruna está secando o cabelo”. Pela janela, uma fumaça negra entrava que, se fosse dos meus fios, significaria que eu estava carbonizada. Foi minha mãe quem deu o alerta – fogo na escola de novo! Mais uma vez corremos pelas escadas, já não havia mais extintores carregados pelo curto espaço de tempo entre os dois incêndios, gritaria na rua, pai e irmão de novo pulando o muro – pelo menos já tinham experiência naquele espaço. Claramente alguém traçara um plano para ganhar o dinheiro do seguro, e no desenho do Scoobydoo essa historia terminaria com “o que teria acontecido se não fosse aquela maldita família vizinha.”
Assim era o cotidiano bucólico na casa dos meus pais. Eu creditava ao excesso de gente, era isso que provocava as estripulias, mas hoje percebo que não – aqueles dois, sozinhos, tem mais capacidade de se meter em altas confusões e aventuras do que todos os personagens da Sessão da Tarde reunidos. E foi assim que, munidos desse know how e impedidos pelos filhos de abrir a porta de casa para qualquer coisa além de buscar comida e descartar lixo, ligaram dizendo haver “uma coisa estranha no hall”.
- Não tem nada de estranho no hall, vocês não vão abrir a porta, não sairão de casa. Já aprendeu a costurar máscaras?
- Tem um pratinho no móvel em frente ao elevador, acho que é uma comida embrulhada.
Respirei fundo. Tanta coisa para lidar e agora meus pais estão delirando ou alguém está fazendo macumba no corredor deles.
- Deve ser do porteiro, ele esqueceu aí. Não coloca a mão!
- O porteiro não sobe aqui.
- Então algum moço do Ifood subiu e deixou para o vizinho.
- Ah não, eles não sobem também. Eu sou o sindico, proibi.
- Seu pai está indo lá!
- Não! É pra Exu, não pode mexer.
- Quem é Exu? Foi você?
Fui, pensei. Tenho que trabalhar, fazer comida, faxina, unha, depilação, exercícios, tudo na mesma sala, faria despacho no corredor alheio.  Os dois estavam com a porta aberta, me mostravam por Facetime o embrulho de papel laminado, eu já pensava em terrorismo com antraz, de repente percebo gargalhadas da minha mãe. Meu pai, mais de quarenta anos naquele casamento, nem se abalou. Olhava imóvel para ela.
- Estou vendo aqui uma mensagem da vizinha! Foi aniversário dela, deixou esse pedaço de bolo para nós! Que amor.
Me jogo no sofá. Fim de ato. Se ao menos eu soubesse fazer bolo...
Horas depois recebo uma mensagem de L, quer um vaso de planta emprestado.
- Que legal, você vai começar uma horta em casa? Essa semana nasceu um manjericão no meu vaso de pimenta, os passarinhos fazem a maior bagunça na plantação!
Não exatamente uma horta, ele quer empreender.
- Está nascendo um pé de maconha no meu cactus.
Eu não sei por quanto tempo viveremos nessa quarentena, mas me preocupo no quão mudados sairemos dela.
C quer se divorciar, não suporta mais o marido, liga aos prantos, diz que aquele homem por quem se apaixonou e parecia incrível no palco agora passa as noites no sofá fazendo lives, ela não suporta aquele repertorio,  teme que ele esteja obcecado pelos coraçõezinhos subindo na tela. Nas primeiras semanas de reclusão eu cantaria Queen – why dont we give love one more chance? Tantos dias depois jogo logo argumentos práticos:
- Você tem uma filha pequena, uma casa de três quartos, vasos sanitários amarelando, um escritório para gerenciar, prefere arrumar tudo sozinha ou dá para amá-lo um pouco mais?
Nunca fui tão convincente. Próxima ligação, por favor.
Minha mãe está comendo o bolo da vizinha, meu pai segue seus comandos separando os parafusos do armário de ferramentas por modelo e tamanho, mas está preocupado com o barco, um veleiro de 27 pés visto pela última vez quando achávamos que tinha uma gripe lá na China. Diz que o barco pode estar perto da água e em risco no caso de uma imprevista ressaca, alagado pela chuva podendo tombar da carreta, pode ter criado vida e fugido pra Dinamarca onde a situação está melhorando!
Finjo sacrifício, decido ir até o clube checar. Preparo um figurino Chernobyl e uma lista de justificativas como se alguém fosse me interpelar no caminho e cobrar explicações sobre o que eu fazia na rua. “Identidade, por favor. A senhora não sabe que tem live do Raça Negra hoje?”.
Atravesso o clube estranhando até o sol na pele - já era quente assim? De repente ouço mini-ondas batendo na parede do cais. Fico ali por minutos longuíssimos, apreciando. Que som deslumbrante proporcionado por uma água negra, destruída com sacos plásticos, garrafas pet, mochila despedaçada e tudo mais de imundície humana produzida!
Existe uma tartaruga que vive no cais do clube, uma guerreira. Tenho enorme afeto por ela, o que passa na cabeça miúda de uma tartaruga que tem o mar inteiro para viver e escolhe o Rio de Janeiro? Consegue nadar e respirar naquele mar de lixo, nunca sei se feliz ou como as moscas que ficam batendo no vidro tentando sair sem perceber que é só chegar para o lado porque a janela está aberta. Somos muito parecidas nesse aspecto habitacional.
Fico pensando na tartaruga quando vem até mim um gato, dos muitos que circulam por ali. São todos vacinados, usam coleirinhas de miçangas, estão presentes na minha vida  desde que sou criança e minha mãe se desesperava: não mexe no gato! Ele arranha! Solta o gato! O bicho traça uma reta em minha direção miando aos gritos quase correndo em duas patas com as outras em forma de braços abertos, como nós faremos ao reencontrar os amigos – peloamordesaofrancisco, fala comigo! Abro meus braços para ele, desobedeço a minha mãe. Sento no chão, máscara no rosto, álcool gel no bolso, sol no corpo, vento do mar, eu e o gato. E de repente avistamos ela, acompanhada de amigas. Ficamos ali vivendo aquele momento lindo - eu, o gato, as tartarugas. #TamoJunto, amiguinhos.
E às vezes eu deixarei
Você me ver chorar, sorrindo

And love (people on streets) dares you to change our way of
Caring about ourselves
This is our last dance
This is ourselves under pressure