26.12.11

As monções

Foi em dezembro de 2011, quando um especial de música evangélica substituiu o Rei no horário nobre que tudo começou. Ne verdade deve ter sido um pouco antes, mudanças assim não acontecem em um estalar de dedos, mas estávamos todos checando o Facebook então só ali nos demos conta de que  Suzana Vieira andava quieta, e ainda vinha mais chumbo grosso.
 Anos antes já existia a brincadeira de que o El Nino faria o mar transbordar, Petrópolis seria a nova orla, achamos fashion os cachecóis passarem a integrar o vestuário feminino metro-paulista –me-acho-cool-sexual, foi ótimo poder usar botas de cano alto sem precisar sorrir monalisamente a cada piadinha estilo “deixou o cavalo lá fora?”. A garota de Ipanema ainda tinha marcas de sol, bronzeamento artificial era coisa de ex-BBB e simpatizantes ou tema de episodio de Friends, até que naquele ano o Natal chegou e Papai Noel não.

Dias depois, diante de um povo incrédulo de guarda-chuva, o bom velhinho surge de bicicleta explicando que também tem problemas com GPS e precisou parar para comprar um mapa. Não foram as obras nas ruas nem os valores abusivos que o confundiram, aquela terra nublada de gente desbotada é que não podia ser o balneário carioca de sempre! Onde estava o verão?
Alguns apontaram as baixas temperaturas como mais um indício de desenvolvimento, outros quiseram colocar panos quentes sobre a situação alegando ser decorrência do fortalecimento da classe C, mas nem os ambulantes do Centro aguentavam mais vender guarda-chuva nem  as UPAs tinham mais remédios para as micoses causadas pelas poças pisadas pelas sandálias das moças. Chico abriu a turnê apontando para as nuvens nos versos “o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta” e temeu ter que trocar o patrocínio da cervejaria por vitamina C. Enquanto Caetano opinava sobre a situação Gil achava tudo uma coisa linda, o poder daquela transformação do ser. Com uma enorme preguiça de tocar samba as rodas pós-praia se dedicaram ao chorinho, das areias eternamente úmidas chegavam desolados cidadãos desorientados com quarenta e oito horas por semana para preencher sem mar (o pior que podia acontecer seria virarem paulistas, dia e noite só com uma breja no bar). Elas continuavam batendo nas pedras, as ondas, mas já pareciam os estranhos porta-retratos digitais - um shuffle de bons momentos em imagens do passado. Até quando fazia calor não aquecia vontade.

Foi então que Eike decidiu tomar providências, Nizan Guanaes montou um roteiro, ao Ronaldo entregaram dúzias de ovos, uma verba X e o Beltrame em sacrifício. Sob as câmeras do Luciano Huck lá foi o gorducho como embaixador da cidade enquanto de seu apartamento no Leblon o governador Cabral preparava o Bope para invadir a Fifa, o COI e quem mais ousasse interromper a festa na floresta.  Nunca ficou claro se houve uma falha no sistema ou os responsáveis pelo clima estavam mesmo ocupados aprendendo a dancinha do Michel Teló, fato é que ainda a tempo de ter suas famosas areias entupidas de frango para macumba ou consumo próprio na noite de réveillon Copacabana recebeu o sol. O gorducho voltou para sua cobertura na Barra, as demais praias sempre poluídas voltaram a ser passarela do bom e do mau gosto, aparelhos de ar condicionado voltaram a não dar vazão, chuvas torrenciais só no fim do dia, todo mundo tentando tirar o atraso na academia, toda aquela gente suada e malhada voltou a tomar sua cerveja de Havaianas e regata às oito da noite em pé no balcão do bar. Reclamando do calor todos voltaram a ser felizes, e aos 40 graus o Rio de Janeiro continuou sendo.

25.12.11

;-)


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4.12.11

O descompasso do criador


O que aconteceu? Isso lá é época de falar em Belo Monte? A revista de domingo lista cinquenta tendências do verão e sobre a metade delas nunca ouvi falar, a própria estação parece distante como Copa e Olimpiadas - vai acontecer, mas no futuro, medida de tempo que não consigo dimensionar como também não visualizo bilhão. Distância sempre foi uma referência complicada para mim, só passei a calcular um quilômetro quando descobri que entre dois postos da orla tem oitocentos metros. Mas os verões, esses eram fáceis! Estavam sempre a um palmo. Passados, bastava recordar os fatos mais marcantes, futuros, era só contar os fins-de-semana: esse é o da festa, o próximo o do show, depois tem amigo oculto, no seguinte é a escolha do samba, pronto, movimentos circulares, zona sul de bar em bar. E agora cadê o bar? Cadê as pessoas do bar? Cadê o verão?
Lamentando não ter casaco e uma garrafa de vinho nos sentamos no estacionamento do cinema para admirar a Árvore da Lagoa. Não houve problema na dublagem, estávamos mesmo em um sábado à noite, começo de dezembro, embevecidos com a árvore. Achamos um pouco invasivas as luzes que adentram as janelas da Epitácio Pessoa, e já que era para reclamar meus companheiros desligariam o barulho que vinha do espaço ao lado. O barulho era o samba do bloco do bairro, de onde estávamos víamos o primeiro ensaio onde muita gente se espremia no escuro então saímos dali para jantar no restaurante que vivia lotado, mas agora sobra mesa porque o dono abriu um com mais drinks na redondeza.
Estava cheio de “lher-mu”, ele disse sobre o evento barulhento, ao que rebati de imediato com um “não frequento lugares com “lher-mus”” e ainda complementei que no ultimo ensaio fiquei horrorizada com a falta de respeito dos que conversavam alheios à presença do Monarco no palco. Eu mesma não acreditei nas minhas palavras. Virei praticamente um João Gilberto, fevereiro me aguarda no Municipal! “Eu ainda não cresci”, ele explicou sorrindo, notavelmente a léguas do meu mau-humor, e passei o resto do dia pensando que não existe pressa nenhuma para que isso aconteça. Eu ainda não envelheci.
Dia desses alguém brincou que o Brasil está tão desenvolvido que atualmente faz frio em dezembro, mais dois anos e montaremos bonecos de neve no Natal. Outra explicação cogitou estar o tempo passando tão rápido que as estações não conseguiriam mais acompanhar, viveríamos um problema grave de falta de sincronização. Pode acontecer. Quem garante que o tempo das coisas deve ser absolutamente cartesiano e previsível? Vai ver o ritmo do mundo desandou, sei lá, do meu ponto de vista as coisas parecem bastante paradas. Acontece que pode começar uma guerra de vídeos com fundo branco sobre a construção de hidrelétricas, a Fatima Bernardes deixar o Jornal Nacional para entrar no BBB, não sobrar um ministro no governo Dilma e na praça Tahir começarem a cantar Michel Teló, preciso que foquemos no que realmente importa porque não estou pronta para viver de outono. Não adotei estratégia de pacificação então, a quem de direito, peço o favor de soprar essas nuvens, vamos empurrar essas cadeiras para o canto e abrir espaço no salão.
Como tocava na falecida Rádio Cidade: é verão no Brasil e a cidade ferve!

29.11.11

A gota d'água

Invariavelmente ao meu redor tem um advogado, é a profissão de metade dos meus amigos. Curioso já que detesto confronto de qualquer natureza, apesar de não perder um debate. Lembro nitidamente do Brizola pedindo aos eleitores que escolhessem qualquer um daquela mesa, mesmo que não ele, desde que não votassem em quem nunca deu as caras como fez o Collor. Isso foi mais ou menos em 1835, quando meu senso libriano de justiça começava a querer sempre investigar melhor os pontos defendidos. Vai que o carisma do debatedor me influenciou? Melhor postura, atuação, desde lá tudo eu preciso entender melhor. Sobre os advogados acabei aprendendo que gostam de discutir como competidores gostam de competir, se não houver um oponente são capazes de criar uma disputa entre o pé esquerdo versus o direito, e sobre mim aceitei ser libriana e jornalista, com uma ressalva: nós librianos não somos indecisos! Ok, acho dificílimo exame de vista, mas porque projetar letrinhas na parede e ficar perguntando ao paciente se é melhor “assim ou assim”, sendo que os “assins” são exatamente iguais, não pode ser método o mais certeiro de avaliação. E aquela cena toda pode ser uma pegadinha! Eu sou um ser desconfiado.
Eis que recebo um vídeo pedindo minha assinatura contra a construção da usina de Belo Monte. O assunto virou moda, precisei me posicionar, e quanto mais eu pensava sobre Belo Monte mais vinha à memória a Maitê Proença tirando o sutiã. Procurei “hidrelétrica + sutiã” no Google, mas só aparecem referências a esse "argumento", cogitei até ser merchan de lingerie. Vai ver, na web, às vezes um sutiã é só um sutiã mesmo e em um vídeo-campanha Maitê Proença é sempre Dona Beija.
Lá em 1989 o governo fez uma campanha contra o câncer de mama onde a Cassia Kiss mostrava os peitos. Mamas são peitos, relação óbvia, não tenho problema com peitos. É curioso ver as siliconadas que pedem a todos para comprovar a textura da prótese e pessoalmente não me sentiria confortável amamentando no salão de embarque do Santos Dumont, mas em geral acho uma parte bem bonita do corpo feminino. O ponto é que os cartazes espalhados pela cidade nos faziam esbarrar nos peitos da atriz com mais freqüência do que um marido tarado agüentaria, e secretamente comecei a torcer pela extinção dos peitos da Cassia Kiss. Achei duvidosa a intenção, mas eu tinha 11 anos, fiquei quieta.
Fiquei quieta também com minha desconfiança em relação à ação via Facebook de conscientização para a mesma causa, quando as mulheres secretamente combinaram de escrever em seus status onde gostavam de deixar suas bolsas ao chegar em casa e assim despertar a curiosidade masculina para a doença. Foi um festival de “eu gosto em cima da mesa”, “prefiro no sofá” e “comigo é sempre no primeiro lugar com espaço”, e até hoje questiono se referencias sexuais não bloqueiam os neurônios dos homens para qualquer outro assunto. Também não entendi por que o publico-alvo da conscientização eram eles e qual o resultado prático do movimento, mas fui a única a deixar minha bolsa, mamas e homens fora dessa, a imensa maioria apoiou a brincadeira, eu sou uma mala.
E assim voltamos ao Pará e ao projeto Gota D’Agua. Enquanto divulgação o vídeo até que funcionou, já recebi o link mais vezes do que vi os peitos da Cassia Kiss! Passei a me interessar pela polêmica e consegui apurar que a construção da usina acontecerá no rio Xingu, próxima à cidade de Altamira, é uma das obras mais importantes e caras do Programa de Aceleração do Crescimento, alvo de criticas de ambientalistas, vai deslocar a população da região como acontece em casos semelhantes e há controvérsias sobre se esse povo não estará melhorando sua qualidade de vida com isso. Também não se tem certeza de que o país exerça um controle rigoroso na fiscalização, os impactos sócio-ambientais devem ser avaliados considerando as soluções que trarão ao Brasil e levanta-se a questão de a partir daqui buscarmos outros mecanismos de eficiência energética e fontes de energias renováveis, além de alertar os brasileiros contra o enorme desperdício de energia. Não sei se a maioria de quem assistiu ao vídeo dos artistas encaminhou a mensagem ou assinou a petição, vi que o Rafinha Bastos fez piada da iniciativa. Bom, a maioria passou a considerar Rafinha Bastos um elemento tão nocivo quanto uma hidrelétrica no Pará então paremos por aqui.
Eu vou continuar estudando sobre Belo Monte para opinar, mas, sinceramente Ary Fontoura, o que espero para o Brasil dos meus netos é que a imensa maioria seja mais bem-informada e reflexiva. E que os apelos criativos da mídia estejam mais focados no conteúdo e não na audiência fácil.

17.11.11

Em palavras


É pior do que morrer porque ao morrer - considerando que até agora ninguém voltou para desmentir - acabou. Ruim é continuar preenchendo todas aquelas horas cheias de minutos, dias inteiros, todos os dias em que nasce o sol, fica tudo colorido lá fora, muitos sons, e anoitece noites enormes, compridas. Noites que emendarão em dias em que você tem que se levantar mesmo tão cansada, decidir se pior é engolir comida em um esforço semelhante a ruminar papelão ou manter-se um pouco mais sem nada, e encarar pessoas. Poucas pessoas ainda distraem, você ri, se ninguém comenta sobre o nariz vermelho ou olhos marejados é porque nem notaram a escapada discreta ao banheiro, pausa momentânea para chorar. Qualquer porta que se fecha dispara o gatilho de lágrimas, ao dirigir elas vertem tão habitual e automaticamente que nem devem ser classificadas como choro – são só seus olhos que escorrem. Uma sobrevida onde quase não há movimentos, não existe o brusco. Tudo vai sendo porque deixa ser, deve ser, mar antes da arrebentação, aquela água que vem e vai, vai, vem. Você nem transborda.
Fúria, um grito, socos, aos berros, louças quebradas, roupas rasgadas, nada. O único rompante de euforia vem do álcool porque você está ali, vestida, acordada, as pessoas ao redor riem e pulam, festejam, há música, luzes mas não essa fumaça, como se dissipa? Se tudo parece meio distante é porque aquilo não é um sonho, é real, estão todos ali mesmo parecendo impossível tocá-los, as vozes estão aqui, você é quem não está. Você não pertence. É um feitiço, sonambulismo. E daquelas garrafas sai a cura que aproxima as pessoas e afasta as memorias então é mais um copo, outra dose, cuidado, não pára pra isso não acabar, e você está se misturando, olha quanta alegria e de repente uma coisa, qualquer coisa, estala. O encanto se rompe. Não vai, se esforça, disfarça! A raiva que cresce do fundo do fígado chega à goela na forma de dor, e aí sim você chora. Chora. Se contorce. Se assusta e apavora porque escancara, se afasta, vai se trancar – quem colocou essa aqui? E a culpa te espreme na cama, não abre essa cortina que todo esse sol vai apontar um dedo indicando que esse mundo lá fora não foi feito para você. Você não o merece. Ele não te entende. Quase ninguém entende, só te defende quem repete que vai passar e é claro que mente. Passa. Dia a dia você se entende porque quer viver, viver é muito melhor do que morrer. Eu sei.  

6.11.11

Testemunho




Um dia perguntei se não o incomodava ver a mãe beijando outra mulher. Ele riu, daquele jeito indicativo de que algo mais forte vem a seguir, e disse que já a tinha visto amarrada em uma cadeira sob a ameaça de ter uma faca enfiada entre as pernas. Pensei que eu não saberia lidar com uma mãe atriz.
O sol de sábado com o trânsito insuportável da rua Jardim Botânico mais o deslumbre por cada canto do Instituto Moreira Salles fizeram meu atraso perder o começo do filme, quando sentei não sabia o que as pessoas ao meu redor já sabiam sobre aquelas que se amparavam entre lágrimas na tela. Eu já sabia que seria algo pesado e que o documentário acompanhava uma atriz em sua personagem durante a encenação de uma peça sobre o Holocausto.
Logo alguém diz para a protagonista completamente abalada: “isso é só teatro, não pira!”. Ela continua chorando, Carla Ribas. Anos atrás uma amiga comentava sobre os tantos prêmios que Carla Ribas ganhara em seu filme de estréia, mas desde que essa amiga me apresentou a ele – o filho da Carla Ribas – até o dia da resposta da faca entre as pernas eu nunca  tinha pensado muito sobre fato do Grabo ser filho de uma atriz. O Grabo era um amigo meu, fazia cinema, três refeições ao dia e sucesso no karaokê.
 Eu tenho uma teoria de que se alguém responde que um filme é bom porque a luz é incrível é porque o filme é ruim. Resposta positiva para “você gostou, o filme é bom?” só pode ser “é”, se precisa de explicação são ressalvas. Depois do “é” permito vir elogios à técnica, atuação impecável, trilha genial, direção segura, etc. O filme do Grabo é foda. Personificando mais um palavrão estava eu desejando poder desmoronar de chorar enquanto o silêncio sepulcral da plateia transformava a dúvida do funcionário em abrir a porta ou não em comédia, ninguém falava, os créditos subiam sem música, os aplausos não começavam e o homem ao meu lado, que havia acabado de entrar na sala, pergunta baixinho: “é de se emocionar?” Meu indiscreto nariz vermelho se vira para ele acompanhando o resto da cabeça num sim que não satisfaz o interrogador: “por quê?”. Que diabos faz um homem que acabou de chegar me perguntando coisas assim? É porque é, não sei, você é meu terapeuta, meu consciente? É tudo tão doído, doente, estafante, eu torcendo para aquela câmera mostrar uma luz, cadê o dia, que horas são que já faz mais de doze que aqueles atores estão entrando e saindo de cena e repetindo aquele texto horripilante e quando finalmente acaba em um mergulho na praia e os braços são jogados para cima dá um alívio...
Não.
Então abriram o debate e a plateia começa a dissecar o filme – onde estava a câmera? Era sempre zoom? Aquele assunto despertava interesse especial no diretor? Todas as imagens foram feitas durante a montagem de vinte e quatro horas da peça? Houve ensaio? Eu queria perguntar como ele tinha conseguido se tornar invisível para estar sempre perto sem interferir na construção do trabalho dela, não consegui.
 Acabou que o homem das perguntas foi apresentado como Eduardo Wotzik, diretor da peça, rimos cúmplices, aproveitei o sol de sábado para um mergulho atrasado na praia e só na volta no trânsito insuportável da Jardim Botânico ainda deslumbrada com Testemunha 4 me dei conta do tal porquê. Aquele abraço no final, Grabo e Carla, a dedicatória no canto direito da tela: “para a minha mãe”.
Se é um zoom em uma atriz por um diretor, mãe pelo filho, isso não é uma critica cinematográfica: só uma tentativa de ir mais fundo no meu sentimento para compreender.

(And I keep thinking where to hang a Warhol that says "Art is what you can get away with.)

18.10.11

And I don't know why (keep walkin for miles)

*Last night she said
 Oh, Baby, I feel so down
 Oh, and turned me off
 When I feel left out

Eu tenho amigas legais pra caramba, juro. Tenho que ir dormir, uns três episódios da temporada passada de Grey’s Anatomy para assistir, a série nova que ele me deu de aniversário, tenho um cachorro que não se importa de ter o sono interrompido por um abraço meu, um provável convite de trabalho na caixa postal do celular, um pote de brigadeiro vencido na geladeira e uma planilha de filmes do festival de cinema para essa semana. Eu tenho uma festa na sexta-feira e uma nova casa de shows pra conhecer no sábado. Tenho um blog onde finalmente voltei a escrever e outro caótico para ser arrumado sobre os lugares do mundo que eu gosto. Eu tenho lugares espalhados pelo mundo sobre os quais posso falar, tenho fotos incríveis e recordações mais ainda da Toscana, do sul da França e de Boipeba. Eu tenho “pretendentes”, segundo o astrólogo. Tenho um astrólogo, eu e minhas amigas. Tem tanto tempo que um homem não domina desse jeito nossos assuntos e cabeças que já tenho vontade de sufocá-lo como fiz com quase todos os que passaram por semelhante condição. Tenho adoração pelo verso “porque era ela, porque era eu”. Tenho vontade de comprar o CD novo da Mallu Magalhães mesmo que tenha tido tanto preconceito quando ela virou namorada do Camelo. Eu tenho amigos que fazem filmes, que fazem livros, músicas, cupcakes, amigos que fazem falta, festa, filho e tanta força pra ficar bem. Gente que quer uma casa em Guaratiba, um trabalho independente, fritar bifes para o marido, que está desinformada de si mesma ou acomodada a velhas idéias. Gente que está no armário se guardando pra uma ocasião especial. Gente que confunde liberdade com solidão, que dirige sozinha cantando de noite, pra quem as informações sempre tiveram links. Gente incoerente e inconsequente, gente inteligente pacas do tipo que me deixa encabulada sem falar. Gente de quem é tão fácil gostar mesmo que se ache tão difícil.
Eu tenho que dizer para ela que vai ficar tudo bem e que apesar de querermos ser diferente isso é como no final das novelas mesmo que tenhamos certeza de que a vida segue depois dos créditos, mas tenho medo dela perguntar como. Eu também tenho uma dificuldade enorme em entender porque.

 I'm walking out that door, yeah
* Last Nite, Strokes

16.10.11

Otimista demais

Nós sempre fazíamos cartões além de dar os presentes. Um dia, deixamos de escrevê-los. Eu deixei. Porque os dias começaram a ficar corridos, os hormônios da adolescência nos permitiram menos frenesi, porque escrever exigia reflexões que remexiam e comecei a me afogar no redemoinho causado por elas, todas as alternativas anteriores, relevante aqui é que, pra mim, o encerramento dos textos sempre podia ser com palavras do Rei: ao fim de mais um ano de vida ou encerramento de um velho, o feliz ano novo trazia a mensagem de que, tivéssemos nós chorado ou sorrido, importante é que emoções tínhamos vivido.


O cinismo da vida adulta adaptou a lição de Emoções no campo amoroso fazendo surgir a premissa de que tudo vale a pena desde que renda boas história na mesa de um bar. Melhorou os fins de noite já carentes de grandes acontecimentos e aliviou a pressão das coisas terem que ser como uma comédia romântica - se passamos a assistir mais produções independentes com protagonistas disfuncionais por que não assumir logo o roteiro inesperado entregue pela realidade? Em contrapartida, comecei a batucar “qualquer coisa que se sinta...”. Por resistência, cicatriz, comprimido ou Oscar, pouco passou a importar. Se até ônibus que demora a passar passa (e me abalar não altera em nada o itinerário dele) imagina dar corda para aborrecimentos que não são diários! “Eu, hein, Creuza” virou mantra, pobre súdita do Rei.

Substituímos nossos terapeutas por um astrólogo – o mesmo para compartilharmos o aprendizado de interrogá-lo - e não o fizemos por inclinações místicas, mas porque a ciência que economiza sessões oferece um panorama de tendências mais objetivo. Aproveitamos que a casa afetiva está vazia para descartar essa ansiedade e focar no realismo que Saturno traz, frequentamos festivais de rock com musica pop e grama sintética, planejamos o negócio próprio menos por idealismo do que por rentabilidade e autonomia. Até que num sábado muito depois dos tempos dos cartões, quando música alta de músicos atraentes é tema de conflito mais profissional do que amoroso, releio a sequencia de e-mails há dias sendo casualmente escrita entre nós. Falamos sobre entender ao invés de julgar, tentamos um perdão, pensamos se o erro do outro não foi o melhor que ele pôde fazer, lamentamos calmamente o descompasso entre os seres e que reciprocidade seja tão complicado de viver quanto de pronunciar.

Porque queremos desacelerar os dias, porque nossa intempestividade não altera em nada o tempo de cada um, porque sabemos que aquele festival não é pra nós, porque nosso mapa astral já aponta o fim do retorno de Saturno, porque todas as alternativas anteriores são verdadeiras vem finalmente uma vontade de chorar e de rir, e uma impressão de que o encerramento-padrão dos cartões não faz sentido de novo, faz um novo sentido. Em paz com a vida, o que ela me traz só acrescenta que o importante é que a emoções sobrevivi.

27.9.11

Expostos

Então eu prometo todos os dias guardar uma coisa aqui
Pra não perder o registro de mim
Pra não perder vocês.

                                             (Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.)

Em cofre não se guarda coisa alguma.

Em cofre perde-se a coisa à vista.

Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por

admirá-la (…).

Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por

ela, isto é, velar por ela (…).

Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro

Do que um pássaro sem vôos.

Antonio Cicero, via Omar Salomão

11.9.11

A história de uma gata

Foi quando ele parou com a notícia de que a gata havia sido envenenada que percebi que dentro desse peito, mesmo quase calado, ainda bate um coração. Meus pais são péssimos transmissores de notícias ruins: para minha mãe estamos sempre na iminência de um desastre, e meu pai não roda a vinheta do plantão extraordinário, simplesmente sai falando em um tom mais grave que o normal. Foi desse jeito que ele soltou uma das típicas frases que antecedem bombas: “você já ficou sabendo o que aconteceu?” Caso os telejornais abrissem as noticias diárias com esse prefácio o número de ataques cardíacos subiria vertiginosamente.


Recomposta e informada - a gata tinha sido encontrada por um condômino na porta do prédio e estava internada - o caso agora era exterminar o veneno da rua. Eu logo desconfiei que os vizinhos da frente pudessem ter atentado contra a vida do bicho: moram em uma casa horrenda, furavam os pneus de quem estacionava perto e ocuparam a calçada com latas de tinta cimentadas e ferros dentro. A suspeita durou pouco porque logo soube que eles tinham se mudado, o porteiro então apostou nos operários da obra, e como teríamos que esperar o começo da semana para os acusados voltarem ao trabalho só me restava torcer pela recuperação da gata e elaborar argumentos que convencessem os salvadores do felino a não colocá-la para adoção.

A gata vivia na rua. Reza a lenda que ela não se dava bem com a outra criada pelos seus donos, uma preta, e ninguém sabe se foi expulsa ou preferiu sair, fato é que não insistiu no conflito e refez a vida no asfalto com o apoio dos moradores ao redor. Aos poucos um comprou cobertor, outro potes de ração, a gata preta-vilã conquistou os donos-paspalhos-manipuláveis e ela todos nós, inclusive os historicamente adoradores de cachorros e nossos animais. Esse era outro golpe no coração: como eu explicaria sua ausência ao meu cachorro?

O cão é o típico cão, espaçoso, extrovertido, estabanado, repetidamente esnobado pela gata e sua enorme ingratidão. Como uma montanha de pelos de língua de fora ele me arrasta pela calçada procurando por ela como se ao encontrá-la fossem correr, rolar juntos, e ela jamais nem sequer se moveu um centímetro em direção a ele, fica sempre imóvel em um ponto acima do chão como se precisasse reafirmar a superioridade, no máximo insinua um olhar de canto para em seguida, languidamente, virar o pescoço no sentido oposto. Não soubesse eu como esse jogo provoca imensa dor acharia graça da sedução no mundo animal.

Foi repassando a vida da gata atrás de fatos que legitimassem minha defesa da permanência dela na rua que precisei admitir que a principal razão para impedir a adoção por estranhos seria a minha tristeza por não mais encontrá-la, como se ao nos vermos fossemos nos abraçar, cantar pelos becos, nos momentos difíceis nos apoiar... E não era só o que me faltava? Então me empenho em um trabalho árduo de desapego, esforço de sete-vidas-em-uma para domar meu coração cachorro e não viver escrava de sentimentos incontroláveis e sou fisgada por uma vira-lata no meio da rua. Eu mesmo mentindo vou é argumentar que nós gatos já nascemos livres.

11.7.11

Admirável mundo novo

Não aguentando mais ruminar a questão, decidi usar o exemplo do mapa. O que eu queria era explicar que à medida que o tempo passava eu ia achando mais atraente a ideia do mundo ser um lugar melhor quando está de cabeça pra baixo, e implementar esse projeto exigiu de mim um afastamento temporário das demais funções. No final – que não é necessariamente o final – optei por deixar que cada um escolhesse o seu jeito de ver o mundo, mas eu ainda tinha que organizar as pecinhas porque tirar tudo do lugar dá o maior trabalho. A questão é que explicar pode ser muito complicado, mas eu queria.

O mapa pra mim sempre tinha sido como todos os mapas, desde o Atlas gigantesco no qual eu me debruçava em cima da mesa até os que o Google Images passou a encontrar: no lado esquerdo a America do Norte ficava em cima da America Central (que sempre foi meio embaralhada) e na sequencia, do lado debaixo do Equador, nosotros. No meio ficava o oceano, à direita a Europa com umas coisas em cima, mais pro lado a URSS das minhas aulas de geografia, equivalente a nós aparecia a África-continente que continha a Africa-país e não sei quem teve essa preguiça de repetir nomes, mais lá pra longe ficava a China e, jogada no nada, a Austrália.  Como o Japão podia ficar perto dos Estados Unidos só passou a fazer sentido tempos depois, vai ver antes de descobrir isso eu nunca nem tinha pensado sobre o assunto porque deve ter havido um tempo em que eu não pensava sobre qualquer assunto. Pulando todas as alterações politicas ocorridas no caminho do meu nascimento até o exemplo do mapa, chegou o dia em que eu vi um planisferio todo diferente. E aí... pensei sobre o assunto. Podia ter sido um pensamento de 3 segundos, mas tendo eu nascido com o sol em libra, o ascendente em sagitário, a lua onde quer que ela estivesse, crescido dessa forma torta apesar de convencional e conversado as coisas que conversei, virou Um Pensamento. O desenhista não estava satisfeito com a disposição do mapa descrita acima, mudou. Não mudou os continentes de lugar, chegou foi ele mesmo um pouco pro lado. Tal Carlos, foi ser gauche na vida, e o centro passou pra direita, o esquerdo pro meio, o “sul” subiu, tudo por causa do ponto de vista do sujeito incomodado. Pronto: novo mundo! Parece simples, mas dançar tango também parece.

Há tanto tempo eu não recebia comentários no blog, provavelmente porque há muito tempo não escrevia no blog.  É que transforma-lo em um caderno de esboços deixaria tudo sem pé nem cabeça: jogar nos outros um mundo totalmente revirado não é lá muito razoável, e por vezes foram tantas andanças atrás de um ponto mais confortavel de observação que faltou folego até mesmo pra mim, que escolhi a missão. Ela dizia que aquela era a primeira vez que lia sentimentalidades nos meus textos.

Essa era a primeira vez que cronicamente me identificavam como não-emotiva. Estava no dicionário: Sentimentalidade - S.f. Estado ou caráter sentimental. Do sentimento – S.m. ato ou efeito de sentir.  Do verbo, perceber o que se passa em si.

Eu nunca tinha passado por essa situação - a de convencer alguém que sou, sim, um ser afetado por emoções, diria que terrivelmente abalado pelo que se passa em mim. Não era mais? Será que com tanto vai e vem larguei minha sentimentalidade em algum deserto ou mar por aí? Eu precisava convence-la. Convencer-nos. Não poderia simplesmente recomendar a ela textos de outras épocas onde sentimentos afloravam magicamente, eu precisava garantir que a autora é a mesma.  A forma pouco se alterou – umas gordurinhas localizadas onde antes não havia nada, centímetros a mais nos cabelos mais claros ou mais escuros , mesma altura já que aos 1.70 não chego mais – mas o resto...  O resto continua exatamente igual, só ainda estou testando o melhor lugar para olhar para ele.

27.6.11

Do armario

Houve um tempo em que eu escrevia

Dedicatória (s) ao que eu vivia
por Bruna Demaison - Segunda-Feira, 13 de Abril de 2009, às 11:31

Você estava ali a um palmo, e tão longe. Não percebi a distância aumentar, acho que eu estava dormindo. Eu estava dormindo longe de você. Tivesse me abraçado ao invés de me agarrar algum pedaço de mim teria evitado essa ausência. Eu me despedi rápido, abri a porta sem temer aquela vontade louca de fechar, dei um beijo sem carinho como se fôssemos nos ver amanhã. Como se eu não fosse sentir saudades. Como se não quisesse esticar um pouquinho mais o encontro com um medo danado de ser o último. Sem precisar me controlar.
Entre lençóis e cafés eu mostrei uma besteira no jornal, nós alcançamos as conversas banais que tanto almejei para imitar casais, mas enquanto minha dor de cabeça aumentava a minha vontade de te prender aqui diminuía. Você não curou a minha dor de cabeça. Você me viciou no calafrio de um olhar intraduzível e me ensinou a te hipnotizar em tantas noites esfumaçadas. Talvez só esse vício nunca tenha saído daqui. O que você fez?
Eu compus tantas canções, quis de novo muito e sempre outra vez. Defendi o prazer. Celebrei a impulsividade. Enfrentei o descompromisso e criei um não me importo para ceder à mania de querer o seu querer, inventei uma maturidade que - quem colocou essa segurança aqui? - descobri real. Desvendei todos os seus sinais. Você transformou o hábito do meu desejo em uma rotina sem esperança, luta vã, desbotou meus planos com os tantos nãos que me ofereceu.
E se eu hesitar em te pedir para ficar? Se falar sem ensaiar, se a festa existir de qualquer jeito e eu nem reparar? Se eu não precisar disfarçar ou tiver a audácia de não estar por perto, se sair de perto por querer e não por fugir. E se eu quiser outro? Se eu achar pouco? Se eu não sonhar mais?
Se eu puder desativar meu radar, rodar de bar em bar sem te buscar não vou mais precisar estufar o peito, justificar meu direito, procurar proteção. Nem vou mais respirar fundo. Não vou mais acordar feliz. Vai faltar motivo, sobressalto, frio na barriga. Coração vai bater pouco. Vai bater certo. Vai ficar chato, nublado. Vai ficar sem graça. Se eu te olhar sem faltar ar não vou mais saber rimar.
Se acabar vou descobrir que não foi nada por você.

16.5.11

Nós vamos invadir sua laje

“Até meia-noite tem bondinho, saltem na 2a estação. Todo mundo sabe onde é!”. O “todo mundo” ao qual o convite se referia eram as pessoas para quem poderíamos pedir informações pelo caminho, mas no caso do grupo no taxi comigo o “todo mundo” era eu mesma, cidadã que pelo segundo fim de semana seguido se dirigia para um programinha cool no Santa Marta. Sempre chamei a favela de Dona Marta, e sei lá se o nome mudou por efeito da pacificação ou da mesma moda que transformou Chernobyl em Chernóbyl e o Nálbert em Nalbér, essa era a questão menos importante ali. “Se chegarem depois da meia-noite subam a pé, é super tranquilo. Uns garotinhos vão cobrar dois reais pra guiar vocês”. O problema maior nem era explorar o trabalho infantil na madrugada, o que não me agradava muito era a idéia de subir sabe-se lá até onde, de meia-calça e jaqueta de couro, para uma festa.

“Vocês vem sempre aqui?”, perguntou o paulista amigo do amigo, realmente interessado na resposta e não sacando o primeiro clichê da cartilha de aproximação. “Vim na quadra da escola, mas nunca subi”, respondi, enquanto no balãozinho de lembrança que saía da minha cabeça modernamente penteada aparecia a cena da semana anterior: a juventude dourada do Leblon descendo até o chão ao som de eu só quero é ser feliz e andar tranquilamente na favela onde eu nasci.

Lá vinha o bondinho, um funicular pequenininho onde deviam caber cerca de dez pessoas, e o senhor na nossa frente grunhiu palavras: “quero nem saber, prioridade é de morador, que trabalhei o dia todo, aê”. Pensei em argumentar que nós também havíamos trabalhado durante aquele dia e que uma vez que o transporte gratuito havia sido instalado e mantido graças aos impostos que pagamos nos encontrávamos todos em igualdade de direito, mas achei melhor deixar pra outra hora. A moça responsável por abrir e fechar a porta do bondinho já berrava para que as pessoas entrassem logo que ela não iria subir outra vez. Com um “anda logo, garota” motivou uma de nós a se abraçar com uma plácida senhora que carregava sacolas e lá fomos todos para o alto e avante sem que o enfezado trabalhador precisasse lançar um “vai subir ninguém não, vai ficar todo mundo quietinho aqui”.

Conforme o funicular se movia descortinava-se aos nossos olhos ela – a cidade maravilhosa. Botafogo, Humaitá, Copacabana, aquele quadrado iluminado eu reconheço, Marina comporia que o Hotel Othon quando acende não é por nós dez. “A festa é aqui”, anunciou a doce funcionária, e avistamos as estrelas brilhantes que decoravam o lugar. Pelas vielas estreitíssimas seguimos o som e lá estava o point do momento: a laje do morro.

A trilha eletro-oriental invadia as milhares de casinhas de janelas grudadas na nossa, um cheiro alucinante de cachorro-quente denunciava o cardápio do evento e provava que aquele ali não era mesmo um evento “legalize”, como avisava o convite: “a festinha acaba às três horas em ponto por causa da UPP e vamos consumir álcool, que é a droga legalizada no país!”. O amigo iniciante nas artes etilicas, preocupado com os efeitos que a estupidamente gelada cerveja disponível poderia causar ao se misturar com o whisky pré-consumido, pedia ajuda: “não me deixem vomitar na comunidade”. É nóis, parceiro, tranquilidade.

O DJ lança mão de Sara Jane: “vamos abrir a roda, enlarguecer”. Uma convidada confessa: “tô me sentindo num filme”. A equipe estava inteira ali: roteiristas, diretores, produtores, atrizes e atores com seus All Stars e galochas coloridas fashionmente descombinadas com calças skinny e chapéus improvisavam coreografias – “ô meu neguinho eu tô ligada em você, tá ficando apertadinho, por favor, abra a rodinha, meu amor”. Take da fila do banheiro e eu penso: tragam a grande angular. Novo balãozinho de lembrança traz a cena do banheiro na semana anterior, quando meninas lindas e louras repetiam os movimentos pélvicos exibidos na pista da quadra a fim de usar o mictório invadido – há de ser feita uma pesquisa sanitária em locais de folia. No caso da laje o imprevisto se deu porque o vizinho que alugava o lavabo extra se zangara ao ser barrado e fez uso duvidoso da cláusula de reciprocidade: “também ninguém vai sair pra ir no meu banheiro”, decretou, e eu fiz questão que checassem se realmente ele havia proibido a saída com aquela finalidade específica ou generalizado a restrição já que a idosa aqui não aguentaria esperar até as três badaladas do sino da Igreja Matriz para descer.

“Tem problema nenhum, é só ir sempre pra baixo”. E lá fomos nós, grupo desfalcado que pediu pra sair, caminhando tranquilamente no meio da noite entre os varais das familias que sabe-se lá como dormiam com um barulho daquele, passando pelo curso de inglês, pela barbearia que tem faixa espalhada em todo canto chamando pra inauguração, as milhares de antenas de TV que mostram uma cidade pra outra e refrescam a arte de viver da fé.

É que daqui do litoral não dá pra ver tão legal o que acontece aí no seu morro, e mais do que um bom baseado parece que a galera do BG quer ficar do seu lado.

1.5.11

Com a cabeça no lugar

Foi falando sobre a Toscana que chegamos a Assis e, assim, a São Francisco. Estava contando a ele, devoto do santo desde criança, como eu, atéia descrente, não tirava da cabeça a preocupação pelo meu pequeno Francisco ter ficado sem a dele.

A oração eu repetia desde pequena,mecanicamente, nas aulas de religião e musicas que cantávamos na hora da entrada no colégio – “é dando que se recebe, perdoando que se é perdoado...”. “Hi-lili Hi-lo’ e “Mariana conta um” eram hits bem mais apreciados pelos alunos nas filas. Foi em uma época ruim, péssima, que ganhei um daqueles papeis com a oração atrás de quem não tinha mais argumentos lógicos pra me convencer de que havia algo de bom em mim.

Francisco nasceu em uma família rica, era popular entre os amigos pelas extravagâncias e aventuras recheadas de bebida, indisciplinas de um garoto que só usava roupas da moda e queria ser famoso. Aí foi aquilo - o tempo trouxe uma imensa angústia, soubesse cantar ele sentiria doer qualquer coisa dentro de si ao ouvir os versos de Liberdade do Camelo ou “acho que não vai dar, tô cansado demais”. O que nos dias de hoje seria tratado com ansioliticos foi não-resolvido com apedrejamento público e gargalhadas, como não podia repor todos os tecidos que vendeu do pai para bancar a reconstrução de uma igreja entregou o que tinha no corpo e seguiu com o bispo local a fim de espalhar compreensão, simplicidade e amor.

Por discordar do modo de vida da Igreja Catolica Francisco fundou sua própria Ordem, ao lado de amigos fieis que compartilhavam a visão de que todas as pessoas são iguais independentemente de raça, sexo, credo ou classe. Poucos anos depois juntou-se aos franciscanos a primeira mulher, Clara d'Offreducci, e talvez por eu ser a última romantica nos litorais desse oceano atlantico ou ignorantemente desconhecer relação assim, imaginei o quanto ela sofreu por aquele louco ou santo homem e acrescentei Santa Clara à minha lista de Mulheres com letra maiúscula. Descontados os radicalismos e entendido o contexto historico, fiquei tão encantada pela vida e obra de Francisco que, já estando por ali, quis ir até Assis agradecer pelo conforto oferecido, e movida pelas tais coisas que existem e nem supõe a nossa vã filosofia ainda trouxe uma pequena imagem como lembrança.

Bem acomodados estávamos eu, a mini-estátua de Francisco e meu cãozinho até o dia em que abro a porta de casa e, entre outros indícios de destruição, avisto o corpo do santo no chão, ao lado do nada arrependido e saltitante cachorro, decapitado. Depois de inúmeras lágrimas, broncas e buscas, do temor de que a cabeça pudesse ter sido engolida pela fera sem coração, a tal foi encontrada! Só faltava Superbonder para que tudo voltasse à paz, e eis que num mistério que desconfio não poder ser classificado como milagre, a cabeça sumiu de novo. Sobrou na Caixinha da Fé o corpo, algumas medalhas, patuás e semelhantes objetos, e mais nenhum sinal do que seria recolocado no corpo. Era isso: vivendo comigo, até São Francisco perde a cabeça.

Então estavamos nós em uma noite comum naquele que é nosso santuário às sextas-feiras quando, falando sobre a Toscana, chegamos a Assis e assim a São Francisco quando ele, devoto do santo desde criança, revela que uma de suas imagens foi danificada durante a limpeza pela empregada e também ficou só com o corpo. E é por essas e outras que eu, ateia e descrente, irei novamente a Assis agradecer por mais essa mensagem de conforto: não acontecem coisas inexplicáveis comigo, não estou fadada a viver com homens sem a cabeça no lugar, não sou tão desesperadora a ponto de até um santo preferir magicamente desaparecer, e mesmo Francisco pode perder a cabeça por qualquer bobagem! Vida que segue.

18.4.11


    Status: aguardando recall.

17.4.11

Do ritual de passagem

Girino, eu fui à missa. Sábado de manhã, manhã de verão, verão carioca, eu e meu leque. Começou o padre (que não era padre, mas frei) explicando que inverteria um pouco a ordem do ato pra não acordarmos você, e decretou que poderíamos fazer o que quiséssemos naquela meia hora: crianças ficassem à vontade para andar, adultos para fotografar, eu para mentalmente criticar as teorias de dominação católica, ninguém precisava se ater à coreografia de senta-levanta-repete-as-palavras conforme esperado. Bacana aquele padre. Frei. Ele calçava uma espécie de Birken e contou que era do convento de Santo Antônio.

Eu sempre conheci Antônio como sendo o santo casamenteiro, as meninas aprendem desde cedo mandingas para o apóstolo, deixam o pobre de castigo até conquistarem a pessoa amada, o célebre é solicitado! Até essa sua tia, cínica que só, instruiu seu avô a interceder por ela junto ao santo em nossa visita à Basílica de Pádua - já estávamos lá, mal não faria, não é? O que nos levou mesmo àquela igreja – que pra arrumar um par confio mais nas ações terrenas do que na boa santa vontade – foi saber que Antonio tinha sido discípulo de São Francisco, a quem tenho muita consideração e prefiro chamar de Francesco pra coisa ficar menos sacra e mais verossímil. Para Francesco todos eram iguais: cor, credo, raça, sexo, espécie, novo ou velho, certo ou errado, é o que entendo dizer o mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo”. E lá estava eu no seu batizado, óculos escuros e olho no relógio, quando o frei de Birken inverteu a frase e me desafiou: como tenho amado a mim mesma para poder repetir o feito por aí? Glup... Veja bem, se somos todos iguais talvez eu venha pegando um pouco pesado comigo mesma.

Como se não bastasse ter jogado aquela bomba no meu colo, o religioso abriu parênteses para explicar sobre o sacramento que nos reunia ali. Contou ele, muito paciente com meu ateísmo, que nosso ato marcava o momento em que declararíamos a você nosso amor, prometeríamos protegê-lo, apresentaríamos a você esse mundo em que vivemos – e nos desculpe se não é lá muito fácil. O tal pecado original pra quem torci o nariz à primeira menção é tão somente a doutrina cristã que pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal. Veja você, Girininho, sobre o que já estamos tão solenemente lhe falando: as coisas podem ser ruins às vezes, nem todas as criaturas com quem você esbarrar terão esse seu sorriso franco, seus olhos azuis vão se encher de lágrimas por diversos motivos. Eu não sei por quê. Como não tem jeito de mudar, tente nunca duvidar, conte conosco, se apegue a qualquer coisa para seguir: vai passar. Há quem conte com Deus, outros contam mesmo é com alguns humanos, sozinho - garanto - costuma ser besteira.

Com meu Ray Ban escondendo olhos inundados e a cabeça se esforçando para segurar aquele coração disparado ainda ouvi o frei lhe dizer para não se preocupar com as suas falhas. “Deus não está nem aí pra elas!”. Num sobressalto ainda pensei em espiar se aquele salvo-conduto se aplicava também a mim, mas preferi sair de fininho e acreditar que sim. Bom mesmo, pequeno, é ser ovelha no meio do rebanho. Muito mais confortável.

Confessions on a dance floor



And I never wanted anything from you
Except everything you had and what was left after that too

9.4.11

Exercicio 2: a TV series

Chloe, Emma/Nat e X estão desempacotando objetos na sala que dá para a varanda da nova casa. O ambiente é de madeira escura, tem tecidos coloridos e uma pequena vista. Emma/Nat usa um lenço colorido na cabeça para prender os cabelos como arco. (Emma/Nat não se chamará Emma/Nat, é que não dá pra um casal ser Chloe e Zoey.)


- Do you like it here?

- It’s ok.

- Too much hanging on the same wall?

- Yeah, maybe.

- Will you ever talk to me again?

- I’m talking now.

Emma/Nat sai. Chloe aconselha X:

- Never marry a woman.

X (not in an angry way):

- You didn’t. ..

- That’s what it’s all about?

X smiles.

- Look at this place! There’s a balcony! Green plants facing a kitchen!

X ri e entrega um vaso da mini-horta e outro com azaleias.

- There are pink flowers also.

- She didn’t want to marry me.

- Because your reasons to get married were a little… non-romantic?

- What’s wrong about prevention? About avoiding problems? I was trying to keep forever what we have now: respect, balance, I don’t wanna see myself in the future fighting against the woman I love for that couch or those books! Now they are ours, memories filling a couch, sacred place, tomorrow they can become weapons. (silencio) Shouldn’t that be called protection? Isnt it romantic: never-ending plans? Taking care of your love?

X continua ajeitando livros na estante de madeira e fala tranquilamente.

- You could be a good lawyer.

- I don’t wanna need lawyers! I want us to be safe, that’s planning the future, not not-being-romantic.

- Very practical.

- See? She used to like that I’m practical, but now, out of the blue, that’s a bad, cruel thing and she doesn’t smile anymore. Who knows about tomorrow?

- That doesn’t work that way, Chlo. And nothing happened out of the blue, it was more out of the dark.

Chloe reage à ironia

X:

- You’re acting much more idealistic than she is. Who do you know that got divorced in a nice friendly way?

- Not here! Not those people around us, occidental junkie crapped people… Come on, our parents got married in the 70’s, they were too high to think properly!

X ri:
- And before that everybody was too attached to rules to separate and before that they were very pre-historic ... (tirando a poeira dos livros com as maos) Did you really read them all? I can see where all this ideas came from. You better stop it!

Chloe rouba os livros de X:
- See that name on it? She wrote it! Thats the same thing: prevention, lets keep things clear from chapter 1! Don’t you think once we created a new living style we should rethink all that surrounds it? I married a woman, shouldn’t we reinvent marriage? New relationship models?

- (provocando) you didn’t married her.

Chloe joga uma almofada em X, que ri alto.

X:

- So thats what it is all about, Che?

Chloe fica parada olhando.

X:

- Look at this place! There’s a balcony! Green plants facing a kitchen!

- There are pink flowers also.

Pausa, as duas em pé.
Chloe:

- I’m just afraid of the future.

- Except we are in the present, and there’s already a balcony and a couch full of memories. And you happy.

1.4.11

keep walking

Não é mentira: voltarei a escrever. Apesar de ter mais medo que a Regina Duarte, após ter acreditado no blábláblá freudiano de que as coisas precisam ser ditas, mesmo tendo exposto mais segredos do que o Wikileaks e sobrevivido a ataques piores do que o de xiitas anti-blogueiros e governos totalitários capitaneados por minha própria mente, voltarei a escrever.


Porque um dia uma me mostrou, pálida, a mensagem no celular enviada no frio da madrugada pelo potencial amor da sua vida daquele mês onde ele pedia desculpa, “sou meio bobo de vez em quando, não todas as vezes”, e fez-se imprescindível um meio público de combinar com o cosmos que nas vezes em que um certo alguém não for meio bobo, que ligue. Que não mande mensagem: ligue. Que se lembre de como fazíamos antigamente, dedos indicadores e não polegares com L.E.R., quando não tínhamos firewall SMSético para nos proteger ou "facilitar" a vida. Quando falávamos, tete-a-tete ou voz-a-voz, e já havia ruídos de comunicação, e antes da Oi complicar um pouco mais as coisas contrariando seu slogan de “Simples assim”. Que junte a esse engodo publicitário o da Nike e “just do it”. Ou cantaremos Cee lo green: fuck you.

Porque um dia o outro chegou ao meu lado, olhou pra tela do meu computador e balançou a cabeça compaixonadamente, se houvesse essa palavra. O fluxograma que eu montava no power point comprovava minha ascensão na empresa. Nos refastelamos nas cadeiras de rodinhas que promoveriam uma corrida sensacional naquele corredor enorme e concluímos que quando se opta pelo caminho da criatividade o segredo é jamais exceder as metas no trabalho: fatalmente a recompensa será o seu orgulho e a administração dos novos criativos, a partir daí denominados de “subordinados”. Tal qual um rei você ficará sentado pensando que o bobo da corte se diverte muito mais, e ninguém entenderá por que quanto mais brilhante nas atuações mais ele te deprime. Cortem-lhe a cabeça – já que cortaram a nossa. E decididos a investir em planos B passamos a pensar na história do garoto loser que desconfia ser o único no planeta sem o dom de ler pensamentos alheios. Penso no roteiro, ele faz rabiscos de ilustrações, a jornada de oito horas acaba.

Porque iremos viajar no verão.
Porque aqui o mundo não será cão.

21.2.11

My lichia days

Não é sobre quem está do outro lado da rua.
E eu também nem sei se as histórias que lembramos realmente aconteceram. Provavelmente não.
Mas sair correndo entre os carros num impulso de impedir a partida do outro é bem diferente de atravessar a rua.



 
Leslie: (no poker) às vezes você perde o ritmo, lê a pessoa corretamente e ainda assim faz a coisa errada.
Elizabeth: Por que você acredita neles?
Leslie: Porque você não consegue nem mesmo acreditar em você.

My Blueberry Nights

14.2.11

O quesito evolução

Peguei a canoa andando e, se é essa a questão, quero sentar na janela sim. Quero inclusive falar com o remador, tenho umas idéias – que isso não é culpa minha, veio de fábrica, item de série. Carnaval eu conheço desde Petrópolis, do samba, por encantamento, me esforcei pra correr atrás, acrescente-se aí uma pitada de egoísmo e altas doses de carioquismo e temos argumentos suficientes pra um texto publicável.


Pra quem só conhecia a Sapucaí pela Globo e “pulava Carnaval” em bailes, atravessar a Rio Branco ensopada de chuva com o Bola Preta bradando Explode Coração foi um rito de passagem, liberdade abria as asas sobre nós! Antes disso fevereiro já era festa, cada um comprava uma fantasia pra ser usada em esquema de rodízio, os mais velhos nos enchiam de um gel chamado New Wave com purpurina que é capaz de estar até hoje entranhada nos tapetes seculares da casa da serra. Homens se vestiam de mulher, as fronhas velhas eram transformadas em máscaras que me davam um pouco de medo, o Petropolitano Football Club era o palco da algazarra. A banda descia do palco às 4 da manhã e arrastava até a rua os que já tinham idade pra estar no “Baile do Preto&Branco”.

Quando chovia muito (e desde aquela época Petrópolis já sofria com as águas de janeiro, fevereiro e março) o rádio virava a bateria e as serpentinas invadiam a biblioteca. Confete não! E espuma em spray, pro bem de todos, nem existia, no máximo o que saía dos tubinhos era um tal de lança-perfume, e os cartazes nas paredes dos salões que proibiam o uso me deixaram com a impressão de que as épocas passadas eram bem mais liberais do que a nossa - apesar dos meus pais insistirem que eles borrifavam lança no ar porque era geladinho...

A penca de crianças cresceu, a casa a família vendeu, e então quando o Escravos entoou que “quando eu fico triste o samba insiste em me levar” aquilo fez completo sentido – eco, como o do surdo. Dezenas de novas pessoas entraram na minha vida a partir dali: quatro dias de folia e brincadeira, nós pra lá e pra cá até quarta-feira. Se nenhuma cabrocha de velha guarda olhou torto pra lourinha desajeitada que caiu no huly-guly, que direito tenho eu agora de reclamar? O samba é democrático, querida! E o Carnaval é – ufa! - uma festa politicamente incorreta, vou botar no c* do trocador, dane-se o que ele tenha feito: eu quero botar meu bloco na rua e sambar com os garis e vassouras, arlequim nenhum tem coragem de chorar pelo amor da colombina no meio dessa multidão que pensa que Red Bull é água.

Se eu fosse sincera confessaria até que a banalização da coisa me faz olhar com enfado as ameaças de quem foi pago com traição por quem ele sempre deu a mão. Será que eu gostaria de ser um rei no meio dessa gente tão patrocinada, sem camisa, determinada a beijar o maior número de bocas possíveis que pensa que o Asa arreia e não entende quem é Monarco então “bora pro Chora me liga”? Não vai dar, não vai dar não. Ou vou não, quero não, posso não. Quando eu pude de novo me fantasiar de bailarina e atravessar o Leblon até o mar aquilo parecia tão ingênuo e seguro... Nunca mais vou cantar os versos lentos de Máscara Negra na Dias Ferreira? Nunca mais será um coro de foliões emocionados que não vão explodir na estrofe seguinte como micareteiros? Isso cria um déficit de poesia nos meus dias.

Ô Braguinha, essa gente que envelhece e torce o nariz pra molecada chama de insensatez um abadá... A vida passa, menina! O Monobloco já saiu da Gávea faz tempo, do 9 o Empolga foi pro 6 que em Ipanema não cabe mais a antes diminuta torcida americana do Odisséia. O bloco de hoje é daquele ator global mesmo, e não joga esse ar blasé pra cima do menino que coloca a mão na sua cintura porque os recém-grisalhos que compartilham da sua nostalgia um dia fizeram o mesmo em alguma colombina. Menina vai, com jeito vai, pra canoa não virar põe suas sapatilhas compradas no Saara e tira do armário as saias de filó.

Não leve nada a mal, apesar de tudo hoje é Carnaval.

28.1.11

Para manter o equílibrio*

Tudo ia bem. Sob controle, o que na maioria das situações é mais do que bem. Perder o controle, inclusive, passou a ser um dos meus piores pesadelos, loshermanamente eu diria “deixa o verão pra mais tarde”. É tempo de se estabilizar. Depois de dias turbulentos pude até – pasmem - sair de férias! Sem relógio, sem jornal, sem responsabilidades, vinte e um dias. Sim, eu chequei se as janelas estavam mesmo fechadas antes de sair, conferi o passaporte na bolsa, tive certeza de que as contas estavam pagas, funções delegadas, entrei naquele avião! No pior dos casos explodiria uma guerra civil no meu destino de descanso ou um vulcão entraria em erupção, o que quer que acontecesse só poderia ser resolvido na hora. Fui.

“Auguri!”, eles gritavam. Mesmo, gritavam, os decibéis italianos são um pouco incômodos aos meus ouvidos, mas desejavam essa felicidade com tal entusiasmo que além do “ciao” e “prego” acrescentei a palavra ao meu reduzido tradutor mental, e sem me preocupar obsessivamente em conquistá-la fui degustando os dias na Itália como aprendi a fazer com cada vinho e comida oferecida. Não é que isso é bom mesmo? Só na volta me dei conta de que tudo tinha sido tão bom, eu realmente tinha estado lá: minhas rabugentices, neuroses e medos viajaram junto com a curiosidade, as lembranças, palhaçadas e todos co-existiram bem. Tudo era parte do que eu sou e aceitar é um pequeno passo pra humanidade, mas gigantesco pra astronauta em questão.

Já estava esse calor quando saí? De novo a serra sofreu com as chuvas! Onde era mesmo que estávamos no projeto? Nossa, foi um mês, mas temos tanta coisa pra conversar! A Dilma, como está? E os dias foram passando com aquele clima de duas doses acima típico de pós-férias, nada era grave, um frescor. Até que... serpente? O quê?

“O Sol e a Terra estão se movendo lentamente e assim a estrela do seu signo não é mais a mesma de quando ele foi atribuído ao seu nascimento, milhares de anos atrás”. Enquanto eu me perdia nas estradinhas toscanas um certo astrônomo foi à TV proclamar mudanças no zodíaco, estava criado um novo signo. Então eu saio de cena por uns poucos dias e mudam tudo? Mudam eu? Já aceitei a mudança da gramática, minhas idéias perderam o acento, agora precisam perder o rumo? Por definição devo pensar em cálculos e não mais em arte, nunca fui metódica! Organização mental... Tivesse a mínima ordem na minha cabeça e não existiriam tantas palavras despejadas do meu cérebro atordoado nesse espaço. Eu já tomei decisões baseada em horóscopo, da Capricho ao último astrólogo-formado-em-psicologia consultado encarei muito Mercúrio retrógrado nessa vida. Perdoei capricorniano com ascendente em leão, devia ter mandado o garoto longe com fúria escorpiana! Perdi horas lendo o meu horóscopo e o dos alvos da ocasião pra saber como agir, me habituei a sorrir pra todos os arianos que cruzam meu torto caminho. Tudo errado? Então o problema estava aí desde 1930 e eu vagando de consultório em consultório buscando “me entender”?

Ninguém termina casamento da noite para o dia, não se inverte mão de rua sem prévia comunicação nem se abandona trabalho abruptamente, certas alterações requerem aviso prévio. Astrologia é coisa séria, sabe-se lá quantos cancerianos adorariam ser easy-rider, odeiam a vida em família, mas insistem só porque o mapa astral falou? Eu poderia ter me casado equivocadamente pressionada pelo retorno de Saturno! Quem banca isso agora, defensores do Butantã? Não. Libriana-indecisa ou virginiana-com-TOC, a decisão está tomada: não mudarei de personalidade. Tal qual Paulinho da Viola, eu sou assim. Ô astrônomo revolucionário, se quiser gostar de mim... me liga mais tarde. Rápido, que librianos mudam de idéia com as fases da lua. E ainda usam acento.

* Ou "Para a Lalol e o André"